Jean Wyllys: Há extremismos e extremismos, não é?
“Na verdade, o que é macabro é o que se esconde por trás dessa superficialidade chique, ou cafona: uma elite egoísta que, no tempo livre, flerta com o fascismo.”
Fiquei sabendo hoje, por um artigo da Folha, sobre uma dona cujo nome não me lembro, que criticou meu “extremismo de esquerda”. A pessoa se apresenta como “socialite”, eufemismo gourmetizado para “rica que não precisa trabalhar”, é sogra de um jogador de futebol e, segundo a matéria, coordena grupos de WhatsApp com “influencers” que simpatizam com políticos não tão “extremistas”, dentre os quais se destaca o deputado fascista que defende a tortura, reivindica a ditadura, odeia as minorias e é réu por apologia ao estupro.
Há extremismos e extremismos, não é?
Eu nem sabia da existência dela, já que, confesso a vocês, nunca tive interesse na vida de “socialites” e mães de noivas de jogadores de futebol. Contudo, fiquei admirado pela relevância que alguns atribuem ao entretenimento dessa pessoa e seu grupo de “influencers”. Na verdade, o que é macabro é o que se esconde por trás dessa superficialidade chique, ou cafona: uma elite egoísta que, no tempo livre, flerta com o fascismo.
Por conta de seu nível rasteiro de politização e de sua identificação com os valores que pretendem perpetuar a desigualdade social, o sequestro do sistema político pelas elites para que garanta de seus privilégios, barateando a mão-de-obra dos trabalhadores pobres e erradicando direitos sociais; eu tomei o fato de ela me chamar de “extremista de esquerda” como um elogio! Obrigado!
Eu sinto, de fato, uma extrema rejeição por esse empresariado paulistano que está em seus grupos de WhatsApp e celebra a brutalidade de um pré-candidato a presidente que é um energúmeno que nada sabe nem propõe em termos de política econômica, saúde, educação, transporte, ciência e tecnologia, segurança pública e desenvolvimento sustentável, e que, além disso, é misógino, autoritário e homofóbico. A identificação dessa elite com tal candidato e o fato de a administradora desses grupos me considerar “extremista de esquerda” diz muito acerca deles, que tiveram todos os privilégios, que poderiam ter aproveitado para estudar e alcançar a “vida com pensamento”, mas são capazes de apoiar um candidato fascista e bruto porque acham que um governo dele poderia ser bom para seus interesses particulares. Foda-se o país, pensam; o que importa é minha conta bancária!
Não deixa de ser significativo — e deve certamente incomodar os que pertencem às capitanias hereditárias e gostam de falar em “meritocracia”, embora seus privilégios nada tenham a ver com seus “méritos” — o fato de eu, que nasci na extrema pobreza, filho de um pai negro que abusava de álcool devido à miséria e de uma lavadeira, que comecei trabalhar aos dez anos, gay desde sempre, que estudei em escolas públicas, conciliando estudos e trabalho e enfrentando o bullying, e que me formei jornalista e mestre em Letras e Linguística, tendo sido sempre o melhor aluno da classe; não deixa de ser significativo que eu, com essa história, hoje exista para a socialite e seus grupos e os incomode em minha existência e mobilidade social.
Eu sou um exemplo do país que eles detestam e gostariam de ver subalterno. Eu sou o resultado das transformações de um país, graças a políticas públicas e leis elaboradas por pessoas, partidos e movimentos sociais de esquerda. Eu sou resultado de uma democratização à qual essa gente não parece muito simpática. E eu sou um homossexual, que veio da pobreza e fez a mobilidade social, graças a suas habilidades e competências, mas que nem por isso defende a “meritocracia” de exceção que eles reivindicam, embora esteja moralmente mais habilitado para falar de meritocracia do que essa elite com fortunas herdadas ou construídas na base da exploração do trabalho alheio e a subserviência de governos corruptos; essa elite que virou dona do país, inclusive alguns que não fizeram nada importante na vida.
O fato de a socialite saber quem eu sou e me citar na entrevista — quando, para mim, até então, ela não existia como indivíduo — é muito significativo do quanto nossas conquistas sociais incomodam essas pessoas. Fico feliz por ela me considerar um “extremista de esquerda” (enquanto os reais extremistas de esquerda me chamam de “reformista” ahahaha). Vindo dela, é elogio, volto a dizer. Para mim, ela não passa de uma ignorante motivada cuja dinheiro não lhe refinou o espírito nem ampliou seu repertório cultural: apenas aprofundou sua cafonice e lhe deu mercadorias.