Jean Wyllys: Meu Deus, meu Deus, se eu chorar não me leve a mal
Há muito tempo não víamos a Marquês de Sapucaí se levantar e cantar uníssona, e em tão alto e bom som.
Essa noite, quando entrou na avenida para fazer o seu desfile, a escola de samba Paraíso do Tuiuti ainda não tinha o componente que acabou sendo o mais decisivo para tornar a sua performance uma performance histórica. O povo.
Ainda que com fantasias certamente menos caras que a de outras concorrentes, em várias alas o que se viu foi a escola do Tuitui demonstrar que tinha o dobro de criatividade e bom gosto. Tomou a atenção das arquibancadas mais com talento do que com dinheiro. Se nos seus carros não havia luzes de led, a beleza e o peso da história que carregavam eram em si suficientes para conquistar a qualquer um que prestasse atenção no que ele dizia. As pessoas passaram a fazer parte como se fossem um verdadeiro elemento externo.
Deve-se dizer. Há muito tempo não se via uma escola de samba desfilar com tantos componentes chorando. E há muito tempo não víamos a Marquês de Sapucaí se levantar e cantar uníssona, e em tão alto e bom som.
Foi um desfile brilhante. Tanto na capacidade de contar o enredo quanto nos quesitos técnicos. As fantasias reunidas faziam um grande sentido, ainda que muito diversas. A escola conseguiu captar e expor elementos em comum entre árabes, judeus, negros e indígenas, entre outros povos que foram escravizados, e soltou d’alma um grito potente da resistência afrobrasileira contra a intolerância e o racismo.
O samba do Tuiuti ainda ecoa horas depois que os intérpretes pararam de cantar. E ninguém tem coragem de torcer para que a escola fique fora do desfile das campeãs e não possa apresentar de novo o que foi essa sua passagem histórica em 2018. Quem gosta de samba – eu sou um desses! – não pode torcer contra a Paraíso do Tuiuti este ano.
A minha impressão é que Tuiuti fez como recomenda a tradição do candomblé. Pediu bença aos mais velhos antes de começar a refletir com o sagrado, e atingiu a essência fundamental do carnaval, trazendo de volta um sentimento que costumava ser mais importante nos desfiles e que vinha sendo deixado de lado. Aquelas pessoas se emocionando com a confusão inevitável das palavras do samba com suas próprias vidas é uma expressão de arte inigualável.
Resta a mim a tarefa de endereçar meus cumprimentos. Obrigado a todos os responsáveis por isto: funcionários do barracão, carnavalescos, componentes… Que aula vocês deram essa noite! Se eu chorar não levem a mal…