Por Hyader Epaminondas

Desde sua criação em 1941 por William Moulton Marston para a revista All Star Comics #8 de outubro do mesmo ano, a Mulher-Maravilha surgiu como uma figura revolucionária na Era de Ouro dos quadrinhos. Neste ano em que completa 84 anos, Diana Prince, forjada no barro e depois no aço, transcendeu as páginas dos quadrinhos e se tornou um ícone cultural atemporal, atravessando gerações.

Nos anos 1970, a personagem foi eternizada por Lynda Carter na icônica série de TV. Décadas depois, sob a direção de Zack Snyder e Patty Jenkins, a heroína chegou aos cinemas com Gal Gadot assumindo o manto, consagrando-se como um símbolo global e alcançando grande sucesso de bilheteria.

Em cada era, Diana refletiu os dilemas de seu tempo, e é exatamente esse espelho que ressurge na nova fase escrita por Tom King ao colocar o avatar da mentira diante da Campeã da Verdade.

Atualmente sendo publicada pela Panini no mix Mulher-Maravilha/Flash e indicada pela segunda vez na categoria de Melhor Série Regular no Prêmio Eisner de 2025, a nova fase da Mulher-Maravilha, dividida em três arcos, se destaca também pela arte impecável de Daniel Sampere. Seu traço sustenta uma narrativa visual sofisticada, que amplia a carga emocional da trama com a mesma sutileza alegórica com que F. Scott Fitzgerald constrói a perspectiva de Nick no início de O Grande Gatsby.

Sampere imprime às amazonas um ar de imponência quase divina, conferindo a grandiosidade mitológica que cabe a seres lendários. Mas projeta sua vulnerabilidade quando necessário, humanizando essas guerreiras pelo traçado, pela expressividade delicada de seus gestos e olhares. Sua linha precisa e seus contornos expressivos capturam o peso psicológico que cada personagem carrega, evocando o clima sufocante de medo e perseguição.

Tudo isso em paralelo com a Diana de King, que, ilustrada como uma força da natureza, emana sabedoria através de frases carregadas de calma assertiva. Suas falas carregam o peso do tempo, transmitindo lições profundas de forma indireta, quase como parábolas, ampliando o alcance de sua voz para além do combate, como uma força moral em cena, quase como um avatar da verdade. E ainda sobra fôlego para incluir participações especiais das três gerações de “Moças-Maravilhas”: Donna, Cassie e Yara.

“Foragida” é o título do encadernado que reúne os seis primeiros capítulos da saga. A história se inicia com um gesto carregado de simbolismo: as amazonas são oficialmente banidas dos Estados Unidos após um suposto ato terrorista em território americano, envolvendo uma nova e enigmática amazona chamada Emilie. A decisão, imposta por decreto governamental, transforma automaticamente todas as amazonas, inclusive Diana, em criminosas procuradas.

Em seguida vem o arco “Sacrifício”, com uma participação maior das “Moças-Maravilhas” em momentos genuinamente cômicos, e o desfecho da história do Soberano, contando com a participação especial do Detetive Chimpanzé no capítulo 19 do arco “Fúria”.

A figura da amazona como alegoria da migração contemporânea

Com uma narrativa em terceira pessoa, o narrador conta a história para Trindade, filha de Diana. A estrutura remete a uma fábula, em que alguém compartilha um acontecimento do passado, de uma era em que amazonas eram caçadas, deportadas ou executadas sob a justificativa de “segurança nacional”. King ecoa discursos que se radicalizaram nos Estados Unidos desde o primeiro governo Trump e que, embora sob novas roupagens, continuam presentes. O retrato do imigrante como ameaça sanitária, moral ou terrorista se repete.

Aqui, o pensamento de Achille Mbembe se torna particularmente relevante, especialmente por seu conceito de necropolítica, que descreve como o poder decide quem pode viver e quem deve morrer, seja de forma literal, por violência estatal, ou simbólica, por exclusão social, política e econômica. Essa lógica se manifesta na criação da Amazon Extradition Entity, uma força paramilitar autorizada a eliminar qualquer amazona considerada uma ameaça. O extermínio sem julgamento formal exemplifica o que Mbembe chama de “soberania sobre a morte”: o poder de apagar corpos dissidentes em nome da ordem e da identidade nacional.

A criminalização do diferente como ferramenta política

A América retratada por Tom King opera em um estado de suspensão constante, onde as garantias legais são sistematicamente corroídas sob o pretexto da segurança nacional. Nesse cenário, o autor expõe como a manipulação da verdade, por meio de mentiras cuidadosamente calculadas, se torna ferramenta essencial para a manutenção do poder. Diana, que sempre simbolizou a ponte entre mundos, torna-se então a maior ameaça, não por seus poderes, mas por representar tudo aquilo que o Estado deseja suprimir: a pluralidade cultural, a identidade estrangeira e a autonomia do indivíduo.

Ao colocar Diana frente a frente com as instituições militares e governamentais dos EUA, King revela um embate simbólico entre o feminismo das amazonas e uma masculinidade autoritária que se sustenta pela força do medo. Essa lógica é corporificada no sargento Steel, meio homem, meio máquina, incapaz de afetos, que substitui a escuta por um punho de ferro literal.

Já o Soberano, velho monarca imobilizado em seu trono, encarna a masculinidade em ruínas: um poder esvaziado de sentido, que se mantém apenas pela nostalgia e pela imposição violenta. Ambos representam um sistema em colapso, que teme qualquer possibilidade de ruptura vinda do feminino.

Diana, por sua vez, opta por embainhar a espada e empunhar o laço da verdade, rejeitando a violência física para afirmar um poder baseado na transparência e na exposição. Essa escolha reforça o conceito de “vulnerabilidade como resistência”, de Judith Butler, pois ao enfrentar o aparato estatal com o corpo exposto, Diana reafirma uma força que ultrapassa a mera força física: é a decisão consciente de permanecer visível e insurgente diante do cerco autoritário.

Uma história sobre o presente, escrita como mito

A escrita flui em perfeita sintonia com a arte, carregando a mesma densidade emocional e política. Logo no início, com a introdução dos antagonistas, King recorre a diálogos ambíguos e de duplo sentido que funcionam como instrumentos de agressão verbal. Essa linguagem, marcada por uma infantilização sistemática das mulheres, revela uma postura impregnada de misoginia, na qual o discurso opera como mecanismo para reforçar estruturas de poder.

Palavra e imagem se complementam com precisão cirúrgica, potencializando o impacto da narrativa. O tempo todo, os vilões tentam reafirmar sua masculinidade em um mundo onde ela já não se impõe por si só, instaurando um embate direto entre a autonomia feminina e uma masculinidade fragilizada que recorre à força institucional e à retórica do medo para preservar seus privilégios.

Como um excelente ponto de entrada no universo da amazona, Tom King recorre à linguagem do mito para contar uma história profundamente ancorada no agora. O exílio das amazonas não é fantasia, mas uma parábola sobre o poder da influência midiática e sobre o que acontece quando o Estado assume para si o direito de decidir quem pertence e quem deve desaparecer.

Seus ecos atravessam os campos de refugiados, os muros simbólicos nas fronteiras, os corpos afogados no Mediterrâneo e os gritos abafados no sul dos Estados Unidos. Tudo isso se condensa na figura decrépita do Soberano.

Em tempos em que o outro continua sendo o bode expiatório preferencial do poder, “Mulher-Maravilha”, de Tom King, se impõe como um lembrete incômodo e necessário: toda política do medo nasce da mentira repetida insistentemente até que o controle midiático a transforme em verdade.