28ª Mostra de Tiradentes: Um ‘Prédio Vazio’ com nome de mulher
Terror de Rodrigo Aragão estreou na Mostra Novos Olhares, recorte principal do festival mineiro
Por Juliana Gusman
“Tem uma coisa de fantástico e lindo aqui”, diz a personagem de Gilda Nomacce no novo filme de Rodrigo Aragão, um dos principais nomes do horror nacional contemporâneo. Prédio Vazio é um gore carnavalesco, uma explosão de purpurina e sangue sem tempo a perder. De fato, o prédio agourento que leva nome de mulher – Madalena – é feio e bonito ao mesmo tempo. É matéria de cinema, como o Overlook Hotel, de O Iluminado (Stanley Kubrick, 1980) ou a academia de dança de Suspiria (Dario Argento, 1977) – aliás, citações e evocações visuais sem qualquer tipo de fetiche ou pedantismo. Têm a pertinência do amor. As cores primárias em carne viva saturam a tensão desse lugar macabro na praia do Morro em Guarapari, finamente construído pela direção de arte encabeçada por Priscilla Hupaya. Um assombro, em todos os sentidos.
O cinema de horror é uma questão de gênero e de gênero. No primeiro sentido, diz respeito a convenções de linguagem que podem ser confirmadas e subvertidas. Se o longa de Aragão consegue elaborar figuras tão perturbadoras e jump scares tão eletrizantes quanto os mais convencionais (e ótimos) filmes da indústria hollywoodiana, Prédio Vazio tem lá suas doses antropofágicas de um humor bem brasileiro. Quebra expectativas e eleva a temperatura de cena ao persistentemente dobrar a aposta do gozo que flui, improvável, do riso-repulsa.
No segundo sentido, diz respeito às convenções de representação de corpos generificados. Mulheres, como disse pioneiramente Barbara Creed em sua obra matricial de 1993, The Monstrous-Feminine, ocuparam, com frequência e às vezes impotência, o ambíguo lugar da monstruosidade no cinema. Prédio Vazio resgata as tradições das mães más, movidas por um impulso aniquilador em relação às suas filhas, seus duplos, encarnações de uma ameaça irrevogável dentro de uma ordem masculina de mundo. Piper Laurie, em Carrie (Brian de Palma, 1976), viveu esse tipo como quase ninguém. Seu fantasma está aqui.
A mulher monstruosa é uma armadilha: descola o feminino da passividade incômoda da vitimização, ao mesmo tempo que pode provocar, apesar da negatividade do abjeto, uma contra-leitura politicamente instigante. Para o bem e para o mal, ela age e reage em suas pulsões e contradições. O monstro sempre tem um pouco de humano, afinal de contas.
Neste filme, essa figura paradoxal é forjada por uma atuação igualmente dúbia de Nomacce. Sóbria e colérica, contida e alucinada, a atriz entrega um monstro, “a única alma viva” entre algumas várias mortas que habitam Madalena, que já nasce clássico. A complexidade da maternidade errática dessa personagem é acentuada pelo outro duplo de mãe e filha (Rejane Arruda e Lorena Corrêa), suas vítimas nada passivas. Prédio Vazio evita o equívoco de aplainar as rugas entre elas. O humano também sempre tem um pouco de monstro.
Aragão acerta o tom das críticas sociais, que dão outro sabor tropical da obra: os desejos fora da norma, relações abusivas, especulações imobiliárias e o direito à cidade são questões que aparecem, pontuais e precisas, com a sutileza que, felizmente, falta ao uso desmedido do grotesco. Um filme de bons exageros.
Juliana Gusman faz parte do projeto de crítica feminista de cinema Sara y Rosa.