
23 anos depois, a evolução de ‘O Extermínio’ entre a barbárie do homem e a perfeição da natureza
Danny Boyle cria uma fábula hipnotizante onde a ameaça real é o ciclo vicioso da própria humanidade
Por Hyader Epaminondas
É explícito o quanto Danny Boyle projeta beleza nesta sequência (Extermínio 3: A Evolução). A conexão entre os personagens e as paisagens é pulsante, quase simbiótica, com uma paleta de cores que exala vitalidade. É justamente nessa fusão entre o humano e o natural que Boyle constrói uma reflexão profunda sobre sociedade, ciclos e evolução.
Aqui, vida e morte se entrelaçam numa poética cinematográfica que fala sobre nascimento, renascimento e a eterna reconstrução das estruturas sociais. Tudo sustentado por uma sonoplastia ambiental impecável e uma trilha sonora eletrônica, altamente sintetizada, que parece vibrar na mesma frequência da própria natureza.
Os protagonistas assumem uma forma quase líquida, fluem pela trama, moldam-se às circunstâncias e se sobrepõem aos próprios arquétipos. É impressionante como o diretor faz todos eles parecerem absolutamente reais, e isso se ancora na atuação de Alfie Williams como Spike, uma revelação de apenas 14 anos. Ele não é só o elo que une toda a narrativa, mas também o coração pulsante que conecta toda a história.
Ao apresentar diferentes comunidades isoladas, o filme deixa claro: sociedades evoluem a partir da natureza dos indivíduos que as compõem. E, em todas elas, existe um traço comum: o amor pela consumação, seja ela material, emocional ou, principalmente, pela violência. Boyle provoca uma reflexão incômoda: somos civilização ou apenas predadores sofisticados?
No embate constante entre consumo e controle, o filme revela o quanto esses dois polos são, na verdade, faces da mesma moeda. É uma engrenagem cíclica, uma evolução que gira sempre em torno da violência como resposta e como motor. Uma crítica potente, embutida na própria mecânica da narrativa, que questiona se, de fato, somos capazes de romper esse ciclo.
A construção de tensão aqui abandona qualquer dependência do susto fácil ou de artifícios previsíveis. Boyle, ciente de que na cultura pop atual os zumbis perderam a capacidade de gerar medo genuíno, escolhe não tentar ressuscitar o terror pelo caminho mais óbvio. Em vez disso, ele reinventa a própria lógica do suspense. A tensão não vem do que salta à frente da câmera, mas do que pulsa fora dela, no som, na vibração, na presença quase sufocante dos elementos naturais que dominam cada enquadramento.
É um suspense que se constrói pela imersão sensorial, onde o som funciona como uma ameaça invisível, uma entidade viva que conduz o ritmo da ansiedade, que pulsa junto com nosso batimento cardíaco com uma harmonia singular. Dentro da sala de cinema, com o isolamento do escuro e a potência das vibrações sonoras, a experiência se torna algo brutalmente físico, quase tátil.
A trilha cresce exponencialmente, vibrando em sincronia com o desenrolar das ações, acelerando nossos batimentos, tensionando a cada instante. Até que, num giro abrupto e desconcertante, ela implode. O silêncio ou o som residual dissonante não funciona como alívio, mas como entrega, um espaço vazio criado unicamente para potencializar o impacto visceral da cena que se segue, numa quebra de expectativa que não só desconstrói, mas amplia o alcance sensorial da narrativa.
Entre o Alfa e o Caos: quando sobreviver se torna um espelho das sociedades que criamos
O roteiro de Alex Garland, aliado à estética de Boyle, atinge um nível de simbiose rara. Este não é mais um filme sobre como uma sociedade ruiu, mas sobre como novas sociedades emergem, se reorganizam e seguem evoluindo, mesmo depois do colapso.
Há, aqui, uma reflexão fascinante sobre o que significa ser “alfa” dentro da lógica social e, mais do que isso, sobre como o poder se manifesta, se transmuta e se dilui em diferentes camadas. Cada protagonista encarna uma faceta desse papel, revelando que liderar não é uma questão linear, mas uma dança caótica entre força, vulnerabilidade, instinto e afeto.
No início, somos apresentados à rigidez da força bruta, quase arquetípica, do personagem de Aaron Taylor-Johnson, uma masculinidade excessiva que se ancora no papel paterno de proteção. Mas logo essa estrutura se desfaz diante da força primal e inegociável de um zumbi alfa que transcende as amarras da identidade social, uma potência bruta que brota da própria essência da natureza, selvagem, indomável e implacável.
Então, surge a ruptura: a narrativa é tomada pela potência quase desconcertante da ingenuidade feroz de Spike, cuja fragilidade e olhar curioso escondem uma força que não se curva. Na sequência, somos confrontados pela fragilidade egóica de Erik, vivido por Edvin Ryding, onde o desejo de controle expõe, na verdade, uma profunda insegurança.
E quando parece que o ciclo se fecha, surge Isla, interpretada por Jodie Comer, com sua sonoridade feminina, que ecoa não como submissão, mas como equilíbrio, como respiro na cena de maior impacto do filme, ao demonstrar o maior ato de força de toda a narrativa, relacionado à proteção e nascimento. Até que, enfim, somos conduzidos à figura de Ralph Fiennes, que carrega consigo uma sabedoria orgânica, a de quem já se desgarrou dos vícios, das amarras e das ilusões da própria sociedade, desenhando um mapa sensível e brutal dos múltiplos rostos do poder.
Boyle também oferece uma subversão poderosa dentro do próprio gênero zumbi. Aqui, o horror não vem do grotesco, mas do contraste com a beleza da natureza, que cresce livre, sem as limitações impostas pelos humanos. Essa escolha estética reforça a dualidade entre civilização e selvageria, tecnologia e primitivismo, que permeia todo o filme.
As cenas de ação são absolutamente memoráveis, tanto pela criatividade dos enquadramentos quanto pelo impacto físico que elas transmitem. É curioso como, historicamente, o Reino Unido carrega nos cinemas uma estética fria, azulada. Mas aqui, surpreendentemente, Boyle adota uma paleta quente, vibrante, quase tropical, que transforma cada quadro em um espetáculo visual.
Existe até um pequeno deslize curioso, que só fãs atentos de Power Rangers notariam: logo no início, aparece um brinquedo do Ranger Vermelho da temporada Operação Ultravelocidade, lançado em 2007, o que entra em contradição com a cronologia da pandemia no filme, que começa em 2002. É um detalhe mínimo, mais uma anedota divertida do que uma falha grave. Curiosamente, ele funciona como uma chave de leitura para o epílogo, que reflete sobre como a propaganda, disfarçada de entretenimento na programação infantil, molda subjetividades desde cedo, impactando diretamente na formação do indivíduo, e isso amarra a abertura do filme, simbolizada pela exibição de Teletubbies, e a aparição de um grupo no final.
O arco de Sansão, por sua vez, carrega uma carga simbólica poderosa, que evoca diretamente reflexões semelhantes às que vemos no filme Lamb (2021). Assim como na obra islandesa, onde a fronteira entre humano e não-humano se dissolve na tentativa de criar uma estrutura familiar, aqui também somos convidados a observar o “outro”, aquele que, à primeira vista, parece selvagem ou irracional, sob uma lente que questiona os próprios parâmetros da humanidade.
Humanidade em xeque: o que realmente sobrevive?
Dentro de uma ótica quase lacaniana, o filme força a encarar o espelho distorcido da alteridade: o que nos define como humanos? Inteligência, cuidado, afeto e proteção seriam realmente atributos exclusivos da nossa espécie ou são construções simbólicas que projetamos para reafirmar nossa superioridade? O comportamento de Sansão, ora agressivo, ora cuidadoso, desestabiliza as certezas sobre quem são, de fato, os monstros da história. Aqui, o filme propõe uma leitura onde o “outro” é menos uma ameaça externa e mais um reflexo ampliado das nossas próprias contradições.
Existe um paralelo instigante entre os “alfas” e Jaime, de Taylor-Johnson. Ambos representam facetas do mesmo arquétipo masculino, quase como imagens espelhadas. A diferença é que o primeiro abraça seus instintos de maneira brutal e honesta, enquanto o segundo é um sujeito reprimido, que finge estar submisso às normas sociais quando, na verdade, apenas mascara seus desejos por trás de uma fachada de civilidade. As roupas, os gestos e os códigos sociais que Jaime adota servem como camuflagem, mas suas ações muitas vezes ecoam exatamente aquelas do alfa. A diferença não está no desejo, que é compartilhado, mas na forma como cada um escolhe (ou se permite) performá-lo.
Essa dinâmica fica ainda mais evidente quando observamos como o filme desenha o embate simbólico entre a dominação e a submissão. O desafio de Spike frente a uma figura mais velha se projeta na mesma lógica que rege o comportamento do alfa perante suas vítimas e semelhantes. Ambos os embates operam na mesma chave: a disputa pelo controle, pelo espaço e, sobretudo, pela validação de uma masculinidade forjada na violência.
E é justamente nesse jogo de espelhos que o filme finca uma crítica relevante à masculinidade estrutural: ela permanece sustentada por um objeto fálico simbólico, sempre exposto, materializado na presença do alfa, que aqui não é apenas um zumbi, mas a representação final, crua e inegociável do instinto predatório que sustenta o tecido social.
A jornada de amadurecimento de Spike funciona como uma metáfora visual construída com absoluta atenção aos mínimos detalhes. É através do olhar dele, curioso, ingênuo e em constante descoberta, que o filme molda sua própria estética. O deslumbramento infantil diante de um mundo que mistura sobrevivência, beleza e decadência se reflete diretamente na composição das cenas, nos enquadramentos e na paleta vibrante.
A natureza, aqui, é retratada em sua dualidade mais crua: ora exuberante, ora apodrecida, sempre impondo sua presença sobre os vestígios da civilização. Essa escolha estética é uma extensão da própria narrativa, um cinema quase artesanal, onde cada detalhe parece cuidadosamente esculpido, quase palpável. O resultado é uma verdadeira carta de amor à arte de contar histórias, que não apenas narra, mas também faz sentir, ver e viver o amadurecimento do personagem e, por extensão, do próprio mundo que ele habita.
Tudo aqui pulsa entre o primitivo e o tecnológico, entre o natural e o sintético. E é nesse embate, e nessa harmonia, que Danny Boyle entrega não só uma das melhores continuações dos últimos anos, mas um dos filmes mais inteligentes e sensoriais sobre o que, afinal, significa evoluir.