1º Fórum de Tiradentes apresenta carta com recomendações para melhorias no audiovisual brasileiro
Documento com recomendações ao Governo Federal foi apresentado nesta quarta-feira (25)
Após cinco dias de encontros e debates acerca da situação do audiovisual brasileiro, a primeira edição do Fórum de Tiradentes apresentou, na tarde desta quarta-feira (25), a “Carta de Tiradentes 2023”, um documento com diretrizes gerais que serão encaminhadas ao Governo Federal e à Ancine. O Fórum é uma inciativa da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que está acontecendo desde o dia 20, seguindo até o próximo sábado (28).
Com a presença dos coordenadores dos Grupos de Trabalho (GTs), a carta foi lida por Hernani Heffner e Vânia Lima, fazendo um balanço geral das dificuldades encontradas pelos audiovisual nos últimos anos, potencializadas pelo desgoverno e pandemia.
O documento destaca uma série de recomendações estruturantes a serem consideradas, tais como Governança; Marco Regulatório do Fomento à Cultura; Regulação do VOD/Streaming; Descentralização de Investimento; Lei do Audiovisual; entre outras.
Leia o documento com as diretrizes gerais na íntegra a seguir. De acordo com a organização do Fórum, o trabalho completo será disponibilizado em breve.
Carta de Tiradentes 2023
Como se destrói um país? Como se constrói um país?
Do golpe de estado de 2016 à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, o Brasil conheceu um dos períodos mais obscuros e desafiadores de sua história. E também redescobriu a força e a resiliência da sociedade civil organizada, particularmente das trabalhadoras e trabalhadores das artes, que mesmo imersos em uma guerra cultural absurda, alijados de políticas e programas de investimento do governo federal, confrontados com o desmonte criminoso da máquina pública, e associados a inverídicas acusações de prevaricação, desperdício, perversão e comunismo, seguiram criando, afirmando e reafirmando o direito constitucional de existir.
Dentre as artes, uma das mais afetadas, perseguidas e quase que totalmente paralisadas está o audiovisual brasileiro independente. Da organização institucional à preservação, passando pela formação, produção, distribuição e exibição, não houve área do audiovisual imune ao ímpeto destrutivo da última gestão do Estado brasileiro. A pulsão de morte típica dos regimes nazifascistas, que se abateu sobre o país e o setor cultural, se materializou em acontecimentos trágicos, como os recentes e furiosos ataques às sedes dos poderes da República, e as chamas que consumiram filmes e documentos no incêndio de um dos depósitos da Cinemateca Brasileira.
Não por acaso, a Mostra de Cinema de Tiradentes de 2023, casa deste Fórum, adotou como tema o Cinema Mutirão, um audiovisual brasileiro de feição realmente independente, que encontrou no digital e na construção coletiva caminhos para uma afirmação crescente de um novo Brasil e de uma nova ética das imagens, que já não admite a invisibilidade de grupos historicamente excluídos – povos indígenas, pessoas negras, mulheres, a comunidade LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência – e também de todas as regiões e territórios, bem como todas as faixas etárias, com especial destaque para a infância.
Na abertura do Fórum, a Ministra do Supremo Cármen Lúcia reafirmou a importância do Estado de Direito, o respeito à constituição, o direito à cultura como premissa do exercício da cidadania. Ao longo dos trabalhos, vivenciamos encontros, muitas trocas, escutas e debates, num ambiente generoso e de harmonia; e para produzir, crítica e afetuosamente, encantamentos e visões de mundo.
A metodologia deste fórum reuniu, num ambiente de escuta sincera, um conjunto de mais de cinquenta profissionais de diversas gerações, trajetórias e experiências, que se debruçaram sobre as espinhosas questões transversais ao campo, e produziram contribuições com a premissa de buscar uma nova cultura política para o setor, capaz de revelar a interdependência entre formação, preservação, produção e modos de difusão e circulação.
A dinâmica da participação coletiva foi capaz de realizar uma fotografia em movimento do ecossistema do audiovisual, indicando um conjunto de recomendações valiosas para uma agenda de reconstrução e aprimoramento.
Nossas premissas e valores balizadores foram, desde o primeiro momento, diversidade, descentralização, desenvolvimento econômico e social e uma democracia antirracista.
As informações e recomendações aqui produzidas serão encaminhadas ao Ministério da Cultura, em especial à Secretaria do Audiovisual e à Ancine, e para outros órgãos do poder executivo, além dos poderes legislativo e judiciário. Ao mesmo tempo, o resultado deste trabalho coletivo será imediatamente compartilhado com a sociedade e com toda a cadeia produtiva e criativa do audiovisual, bem como todos os agentes que possam manter esta discussão e mobilização viva. Na visão deste fórum, governos estaduais, municipais e do Distrito Federal também têm responsabilidade no desenvolvimento da política audiovisual, e a eles também será entregue o resultado deste trabalho.
A Lei Aldir Blanc tornou-se um profundo divisor de águas pelo esforço conjunto do setor cultural em viabilizá-la e por seu princípio de descentralização dos recursos públicos federais para estados, distrito federal e municípios de todas as regiões e tamanhos, ampliando-se e aperfeiçoando-se na Lei Aldir Blanc 2. A Lei Paulo Gustavo devolverá para o setor seus próprios recursos financeiros provindos do Fundo Nacional de Cultura e do Fundo Setorial do Audiovisual, garantindo que tentativas de usurpação dos fundos não se repitam. São leis fundamentais, mas é preciso ir além, como ficou evidente nos trabalhos do Fórum.
Consideramos que este Fórum é um ponto de partida e como fruto das discussões indicamos as seguintes recomendações estruturantes e transversais:
Governança: Resgate e qualificação do tripé da institucionalidade da política audiovisual brasileira: reverter o esvaziamento do Conselho Superior de Cinema – CSC, fortalecer e recompor o protagonismo da Secretaria do Audiovisual – SAV para atuação conjunta com a Agência Nacional do Cinema – ANCINE. Reafirmamos a necessidade de uma Agência aberta ao diálogo, que tenha efetividade e eficácia no cumprimento de seu mandato institucional.
Marco Regulatório do Fomento à Cultura: Aprovar com urgência o “Marco Regulatório do Fomento à Cultura”, assegurando as demandas do setor audiovisual brasileiro independente no texto da Lei, para trazer segurança jurídica ao setor cultural e garantir a plena execução e alcance das Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2.
Regulação do VOD/Streaming: Avançar com a urgente regulação da operação do Vídeo Sob Demanda (Streaming) e outras tecnologias de distribuição e veiculação de conteúdo audiovisual, atuais e futuras, com foco na defesa do conteúdo brasileiro independente.
Cotas de Conteúdo Audiovisual Brasileiro: Aprovar instrumento legal com urgência que restabelece a Cota de Tela para garantir a exibição da produção independente brasileira em salas de cinema e suas respectivas sessões, visando tornar permanente este importante mecanismo e prorrogação das cotas de conteúdo audiovisual brasileiro da Lei do SeAC, e garantir a efetiva fiscalização do seu cumprimento por parte da Ancine.
Linhas não reembolsáveis no Fundo Setorial do Audiovisual: Ressaltamos a necessidade de garantir e aumentar significativamente os recursos não reembolsáveis, dada a importância das ações sem obrigação de retorno comercial nos segmentos de formação, produção, distribuição/circulação, exibição/difusão e preservação, em convergência com o fortalecimento da Secretaria do Audiovisual.
Descentralização de Investimento: Garantir o alcance territorial das políticas nacionais, com critérios de descentralização em todas as ações e programas, retomando e ampliando as políticas federativas da Ancine.
Lei do Audiovisual: É urgente a mobilização junto ao legislativo para a prorrogação da vigência desta lei e ampliar o limite do aporte de recursos dos incentivos fiscais, defasado em relação aos custos reais de produção.
Transversalidade Institucional: Estabelecer parcerias interministeriais para o desenvolvimento e fomento do setor audiovisual como efetiva política de Estado: notadamente o Ministério da Educação; da Ciência, Tecnologia e Inovação; de Desenvolvimento da Indústria e Comércio; da Mulher; da Igualdade Racial; dos Povos Indígenas; do Trabalho; das Relações Exteriores; dos Direitos Humanos e Cidadania; das Comunicações e do Meio Ambiente. E também com instituições e empresas como BNDES, APEX, Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica, CAPES, CNPq, Rede Nacional de Ensino e Pesquisa, entre outros.
Política internacional para o audiovisual brasileiro: Rearticular a política audiovisual brasileira com a retomada do lugar estratégico do Brasil no mundo, buscando parcerias com a América Latina, Mercosul, Brics, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, África, Oriente Médio e União Européia.
EBC – Empresa Brasil de Comunicação: O papel do campo público na comunicação social é essencial para a consolidação da democracia e afirmação da cidadania. A EBC tem um papel definidor na complementaridade e distinção dos sistemas público, estatal e privado reconhecidos na Constituição Brasileira. É fundamental a reintegração da EBC e TVs Públicas ao ecossistema do audiovisual brasileiro.
Estabelecer um sistema nacional de preservação: Inserir a memória e a preservação como parte da estruturação fundamental da cadeia produtiva do audiovisual. Criar a Rede Nacional de Arquivos Audiovisuais, para a constituição de um sistema descentralizado.
Formação: Compreender a formação audiovisual e educação digital em todos os níveis de ensino, como uma dimensão estruturante e fundamental da cidadania, da cadeia produtiva do setor e da constituição subjetiva e social brasileira em todas as faixas etárias. Atender a crescente demanda de quadros técnicos, executivos e criativos advinda do desenvolvimento do audiovisual brasileiro e a produção local de tecnologias.
Política de promoção de acesso: É necessário um foco estratégico na ampliação do acesso ao audiovisual, como direito fundamental de todos os brasileiros, implantando programas integrados às políticas afirmativas de combate à desigualdade social.
Democratização do acesso à internet: resgatar o Plano Nacional de Banda Larga, para incluir todos os brasileiros no acesso à internet.
Relações trabalhistas: É fundamental promover estudos e debates sobre a situação trabalhista no setor do audiovisual, promovendo atualizações e aprimoramentos.
Dados e indicadores: Fortalecer o Observatório do Cinema e Audiovisual com a revisão e modernização dos parâmetros de mensuração do impacto do audiovisual, e produzindo uma inteligência estratégica sobre o setor, com transparência e soberania digital.
Informação e Conscientização: Promover campanhas informativas para que a sociedade compreenda a importância do audiovisual brasileiro e das políticas culturais como um todo, para o fortalecimento da cidadania e da soberania nacional.
Sem anistia e sem queima de arquivo! Viva a democracia! Viva o audiovisual brasileiro!