Por Kaio Phelipe

Pri Bertucci é educadore, pesquisadore e criou o Instituto [SSEX BBOX], projeto que se propõe a discutir diversidade de gênero e sexual. Pri também é expoente da linguagem neutra no Brasil e produtore da Marcha do Orgulho Trans da cidade de São Paulo.

Conversamos sobre sua trajetória, movimento LGBTQIAP+ e a relevância de uma comunicação sem gênero.

O que é o [SSEX BBOX]?

O [SSEX BBOX] é uma organização que se dedica à educação, pesquisa e arte, tendo como foco a diversidade sexual, de gênero e de corpo. Acreditamos profundamente na importância de criar espaços seguros e inclusivos para discussões e expressões relacionadas à sexualidade e identidade de gênero, promovendo uma sociedade mais justa e equitativa para nós. A jornada do Instituto [SSEX BBOX] é sobre inovação, letramento e transformação no Brasil.

Nossa trajetória começou com a filmagem da websérie, entre 2009 e 2012, reunindo colaboradories de diversas partes do mundo, incluindo São Paulo, São Francisco, Berlim e Barcelona. Essa série explorava conceitos de gênero e sexualidade para além das fronteiras da cis-heteronormatividade, desafiando os paradigmas tradicionais. A série deu origem à criação do Instituto [SSEX BBOX], que, em 2024, completa quinze anos de atuação no Brasil e no mundo. Hoje, o instituto realiza uma série de atividades focadas em empregabilidade, empreendedorismo – como a Feira Trans – e manifestações coletivas como a Marcha do Orgulho Trans da cidade de São Paulo, que se tornou o maior evento trans da América Latina.

Qual é a relação do [SSEX BBOX] com a mudança da sigla LGBT para LGBTQIA+?

Em 2013, o instituto inicia uma série de eventos e debates girando em torno da websérie e promovendo o tema da inclusão radical, um movimento de inclusão das letras QIA+ na sigla. Realizamos com a ONU Brasil através do programa Livre e Iguais, por exemplo, um dia inteiro dedicado a debates sobre a inclusão da letra I, que representa as pessoas intersexos, e que deu origem à primeira ONG intersexo do Brasil, a ABRAI. Realizamos muitos eventos e em várias cidades do país, levando a importância da inclusão dessas letras na sigla. A Ocupação [SSEX BBOX] e o Circuito [SSEX BBOX] eram itinerantes e tiveram impactos cruciais nesse processo. Essa fase inicial foi fundamental para estabelecer as bases de um diálogo mais amplo sobre sexualidade e identidade de gênero.

Foi durante esse período que, em 2014, em parceria com a cartunista Laerte Coutinho e inspirade por longos debates, eu trouxe para o Brasil a primeira conferência internacional do [SSEX BBOX], a maior conferência LGBTQIA+ da América Latina na época. Esse evento foi um marco histórico, pois introduziu a sigla LGBTQIAP+ e a linguagem neutra no Brasil, termos como não binariedade e queer, expandindo a compreensão e inclusão dentro do movimento LGBT da época.

Quando surgiu a ideia de discutir linguagem neutra no Brasil?

A ideia de discutir linguagem neutra no Brasil surgiu entre 2012 e 2013, quando percebi a ausência de qualquer discussão sobre o tema no país. Realizamos uma pesquisa extensa na internet e nos grupos de militância e ativismo dos quais eu fazia parte e constatei que não havia referência sobre isso, naquela época. Para você ter uma ideia, nem os homens trans eram visíveis naquele período. Não havia movimentos organizados ou qualquer tipo de visibilidade para as identidades trans masculinas e não binárias, em meados de 2012 no Brasil. Por exemplo, entrevistar um homem trans para o Instituto [SSEX BBOX] naquela época foi um desafio enorme, pois muitas pessoas ainda não tinham assumido publicamente suas identidades, a não binariedade e a linguagem neutra praticamente não existiam no debate político, público e social.

A necessidade de uma linguagem neutra surgiu, primeiramente, da minha experiência pessoal, vivendo na região da Baía de São Francisco, Oakland e Berkeley, onde esse assunto estava em discussão desde 2009. Percebi um grande hiato entre essa discussão nos Estados Unidos e o que se experimentava no Brasil. Então, me dediquei a estudos, colaborações, pesquisas e ao aprofundamento do tema para propor uma possibilidade linguística que incluísse a linguagem neutra na língua portuguesa. A solução sugerida por mim e Andrea Zanella foi a utilização da letra E como desinência no final das palavras, lançada através do Manifesto ILE, para uma comunicação radicalmente inclusiva, em 2014. Desde então, muito conteúdo foi produzido e disseminado através de palestras, colaborações com universidades, coletivos e militâncias para que o tema ganhasse a proporção que tem hoje. Fico muito feliz em ver os avanços que tivemos nesta década de empenho e divulgação do tema.

Qual é a importância de não demarcar gênero na linguagem?

A importância reside na criação de uma possibilidade linguística que nos permita uma compreensão mais profunda de nossa humanidade. Vai além da linguagem e da linguística, tratando-se de uma percepção do que realmente está embutido em nosso DNA enquanto seres humanos. Se mudamos nossa maneira de falar, mudamos nossa maneira de pensar e consequentemente nossa maneira de agir no mundo. Nós, seres humanos, precisamos, mais do que nunca, de habilidades linguísticas para perceber a inteligência da natureza. Precisamos aprender a compreender a crise como professora, lembrar quem realmente somos e decodificar os sinais. Infelizmente, a discussão sobre este tema ainda se limita à superficialidade da gramática e da linguística. No entanto, essa é apenas a ponta do iceberg. O que significa se aprofundar? Significa examinar de perto e abrir diálogo social para essa obsessão pelo sistema de vencedories e perdedories, uma vez que essa é a linguagem do conflito e da guerra, baseada em uma leitura da natureza feita pela teoria da evolução darwiniana.

A ciência já evoluiu além disso, mas esse sistema de crenças impactou nosso padrão de pensar e agir, assim como o de nossos pais, avós e muitas gerações antes de nós. Minha pesquisa e o conteúdo do livro Dossiê de linguagem neutra inclusiva apontam para uma discussão mais ampla, que envolve descolonizar o pensamento e compreender nossa conexão como parte de um processo de descolonização da linguagem, dos corpos e das mentes. É um retorno à nossa ancestralidade e compreender as histórias de nossos ancestrais será crucial para o desenvolvimento desta discussão nos próximos anos.

Como os outros países lidam com a linguagem neutra?

Os outros países lidam de maneiras variadas, refletindo suas realidades culturais e sociais. Na Suécia, o pronome neutro “hen” é amplamente aceito e utilizado em contextos oficiais, enquanto na França o uso de “ille” e “iel” – uma combinação de “il” (pronome masculino e francês) e “elle” (pronome feminino e francês) -, embora já incluído em alguns dicionários, enfrenta resistência, mesmo com o apoio em setores da mídia e da academia. Na América Latina, a Argentina é destaque com a adoção de termos como “todes”, especialmente entre os jovens e ambientes acadêmicos. Diversas empresas e organizações internacionais estão adotando práticas inclusivas de gênero, como Lufthansa, Air Canada e British Airways, que ajustaram seus uniformes e saudações, e a Disney, que eliminou divisões rígidas de gênero em seus parques temáticos. Além disso, plataformas como Instagram, Tik Tok e Google estão promovendo o uso de linguagem neutra, e o Instituo [SSEX BBOX] faz parte do comitê que ajuda a pautar essas adoções nessas grandes redes.

Tenho participado ativamente dessa discussão com essas empresas no Brasil e no mundo, refletindo uma tendência crescente de inclusão no mercado global. No Brasil, o cenário é desafiador porque até mesmo pessoas trans e toda a comunidade LGBTQIAP+ ainda não se aprofundaram no assunto para entender o que realmente é esse movimento de linguagem neutra e muitas vezes se opõem com argumentos sem fundamento nenhum, e isso tem confundido muito as pessoas. Fora o conservadorismo religioso e político. Desde 2018, houve um aumento de iniciativas contra a linguagem neutra, dificultando a vida das pessoas trans não binárias. Apesar disso, há um movimento crescente de resistência e promoção da inclusão, alinhado com a tendência global de descolonização do pensamento e respeito pela diversidade de identidades de gênero.

A linguagem neutra é uma tentativa de americanização do português?

A linguagem neutra não é uma tentativa de americanização do português, mas sim uma respostas às necessidades de inclusão e respeito à diversidade de gênero dos seres humanos. Embora o debate sobre linguagem neutra tenha ganhado visibilidade em países como os Estados Unidos, sua adoção no Brasil e em outros países de língua portuguesa surge de demandas locais por uma comunicação mais inclusiva. A proposta de usar desinências como “e” no português, visa criar um espaço onde todas as identidades de gênero sejam reconhecidas e respeitadas, refletindo a realidade e as necessidades específicas dessas comunidades. A adoção de uma linguagem neutra está alinhada com esforços mais amplos de promover a igualdade e a inclusão em diversas esferas da sociedade, desde a educação até a legislação, e não se trata de simplesmente importar práticas de outros países. Portanto, a linguagem neutra deve ser vista como um esforço legítimo de adaptar a língua portuguesa às realidades contemporâneas de diversidade e inclusão, respeitando as particularidades culturais e sociais do Brasil e de outros países lusófonos.

Por que a linguagem neutra é um assunto que divide opiniões?

Porque toca em questões profundas de identidade, cultura e tradição linguística. Um grupo acredita que o outro não pode inventar novas palavras, mas todas as palavras são inventadas. A discussão é sobre quais corpos e identidades podem ter o poder de propor essas novas palavras e quais corpos não possuem esse direito. No entanto, um dos grandes desafios nessa discussão é a resistência ao letramento e ao aprofundamento, não há debate qualificado sobre o assunto nas redes sociais.

Muitas pessoas têm preguiça de ler e compreender plenamente os princípios da linguagem neutra, o que perpetua a polarização. Dentro da própria comunidade LGBTQIAP+, é fundamental entender esses princípios para avançar no debate. Não é necessário que todes concordem em todos os aspectos, mas é crucial compreender o motivo de generalizar, por exemplo, todas as pessoas como “todos”. Essa prática está enraizada em tradições históricas, como a da língua portuguesa, onde Claude Favre de Vaugelas, em 1647, afirmou que o gênero masculino, sendo considerado “mais nobre”, deveria predominar todas as vezes que se encontrasse com o feminino numa mesma palavra. E é dessa proposta do século XVII que nos baseamos nas decisões até hoje.

Para além da falta de letramento, é essencial considerar a história da linguagem neutra no Brasil e a evolução da língua portuguesa. Sem um entendimento profundo desses aspectos, a discussão sobre a linguagem neutra corre o risco de se tornar superficial, com pessoas buscando destaque ou seguindo uma moda nas redes sociais, ao invés de contribuir genuinamente para a inclusão. Como o fato de que até hoje pessoas usarem o X como opção na linguagem neutra, sendo que as pesquisas apontam como uma prática não inclusiva. Somente assim podemos avançar de maneira construtiva e evitar que a discussão se limite a um debate polarizado e estéril.

O futuro é não binário?

O futuro é cada vez mais consciente da diversidade de identidades e isso inclui a crescente visibilidade e aceitação das pessoas não binárias e, consequentemente, da linguagem neutra. De acordo com a evolução das sociedades, há um movimento significativo em direção a descolonização do pensamento e a promoção de uma maior compreensão e respeito pelas diversas identidades de gênero. Essa tendência pode ser observada em várias áreas, na linguagem e comunicação, na adoção da linguagem neutra é um caminho importante para reconhecer e respeitar as identidades não binárias. Termos como “todes” e pronomes neutros estão se tornando mais comuns, refletindo um esforço para incluir todas as pessoas nas comunicações diárias. Também na legislação e direitos, na cultura e na mídia, empresas, organizações e, principalmente, na educação. No entanto, é importante reconhecer que o caminho para a plena inclusão é longo e a oposição a mudanças é um desafio a ser superado. O progresso requer diálogo, educação e empatia para construir um futuro verdadeiramente inclusivo. Portanto, o futuro é, de fato, não binário, na medida em que avança para reconhecer e incluir todes.