Por Isis Maria

Conversei com Cristhiano Aguiar, escritor, professor de literatura brasileira e crítico literário, paraibano de Campina Grande, no começo de julho deste ano, em São Paulo. Conheci Cristhiano na época do lançamento de um de seus livros, Gótico Nordestino, em 2022. Digo conheci, mas, na verdade, li sobre ele e li o livro. Me interessei pelas histórias, mas o autor também despertou meu interesse pela crítica literária. Aqui, saio do papel de entrevistadora, visto o de leitora e assumo que gosto muito de ler sobre leituras. A cada livro que termino, leio uns quatro ou cinco textos sobre ele. Gosto de saber mais opiniões, enxergar outras perspectivas, captar referências. Gosto de saber o que move outras pessoas a lerem também.

Assim, continuei acompanhando Cristhiano. Em 2023, ele lançou a newsletter Linguagem Guilhotina, que passei a ler. A partir de um texto sobre Carla Madeira e Tudo é Rio, achei que era hora de ouvir Cristhiano, além de lê-lo.

E aqui volto ao papel de entrevistadora para dizer que a conversa foi excelente. Me esforcei para resumir em poucas páginas, mas há trechos inteiros que merecem ser lidos exatamente como foram transcritos porque, se não, não fazem sentido. Talvez porque a literatura faça isso: nos ajude a organizar pensamentos em palavras, e cortá-las seria voltar ao caos.

Há algo meio místico que envolve a literatura e seus autores: o ritual da escrita, a ideia divina de que uma obra surge da inspiração. Isso acontece em outras artes também e sempre me instigou a saber os “comos”. Porque não tem nada de divino nisso, é parte uma ideia que plantam na nossa cabeça do artista como um ser “iluminado”, parte a gente ficar tão arrebatado com o que lê, vê, ou ouve, que acha que não pode ser humano. Essa inspiração não acontece como imaginamos.

“A literatura me proporciona os melhores encontros. Se você me perguntasse o que eu sou, eu sou literatura.”

Cristhiano me contou que literatura é o que lhe compõe, o que faz para viver. “Escrever pra mim é construir a mim mesmo, o tempo inteiro. E é algo que eu nem se quer me pergunto. Você não se pergunta o que é para você beber água. Para mim, é nesse nível o ato da escrita, me acompanha desde que eu sou criança. É construir a mim mesmo”. Talvez por isso, escrever não tenha a ver com divindade, mas com o fluxo natural da vida.

Nesse fluxo, há muitas referências, especialmente as não literárias. “As referências variam de projeto a projeto. Se você me perguntasse isso ano passado, eu te daria um conjunto de referências diferentes. Se você me perguntasse há 10 anos, eu te daria um outro conjunto de referências. A minha referência principal é a literatura, minhas referências principais são a literatura. Principalmente literatura fantástica do século XIX, literatura modernista, brasileira e em língua inglesa, literatura contemporânea. E também todo tipo de literatura fantástica, horror, fantasia, ficção científica. Mas, as referências extrapolam a literatura também. Eu vou falar que as referências podem ser minha vivência também, a minha avó, minhas duas avós. Uma referência importante para mim é a Bíblia. Porque eu venho de um lar protestante, eu fui criado na religião protestante, embora hoje eu não frequente mais essa religião. Mas a Bíblia é um ponto de partida e de chegada para mim: a minha primeira relação com histórias e com poesia vem pela Bíblia. E aí entram também histórias em quadrinhos, filmes, séries”.

Também vem Tim Burton e um adolescente que apreciava estéticas mais sombrias no cinema e na literatura. E que, mais velho, sentiu que precisava se reconciliar com essa criança e adolescente. E tudo que escreveu, até então, tem um pé nisso, essa atmosfera. Existem outras dimensões, como a cura de traumas e maneiras de processar o luto. O fim de um relacionamento vira um conto, o luto da perda de um amigo se assimila melhor na escrita do horror.

Mas Cristhiano falou que está escrevendo um romance agora, e as referências mudam. Jamaica Kincaid, que esteve na Feira do Livro, é uma delas. E sair do conto para o romance vem num momento de fôlego. “A ideia que eu tive para esse romance é uma ideia que só funciona numa coisa mais extensa. Eu dei uma cansada dos contos também. Eu senti que eu precisava me expressar num outro gênero agora.” Os contos voltam outra hora.

Para esse romance, além de referências como Jamaica, Cristhiano foi de volta pra casa. Uma viagem para a Paraíba para entender alguns pontos que mexeram com a história. Coisas que pareciam prontas mudaram. E aqui talvez a gente não deva se aprofundar para não estragar a surpresa de ler quentinho quando chegar.

Mas para o Gótico Nordestino, Cristhiano me contou que usou muita referência feminina, e Elena Ferrante é uma figura bastante importante para o livro. “A maior parte das minhas personagens principais do Gótico são mulheres e isso é um desdobramento dessa leitura que eu faço com as autoras contemporâneas. E também uma autora como a Ferrante me ajuda a criar uma tentativa de uma verdade sobre essas personagens. E as minhas personagens, elas estão em situações de limite e de crise. E a Ferrante, assim como a Clarice Lispector, por exemplo, me ajudam a pensar nesses homens, mas principalmente essas mulheres, nesse estado de crise.”

Nesta conversa foram ainda citadas: Marina Henriquez, Samantha Schweblin, Alice Munro, Rachel de Queiroz, Conceição Evaristo, Annie Ernaux, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Machado de Assis. E também, referências musicais como Ivete Sangalo, Flávio José e sertanejos contemporâneos, que podem muito bem serem lidos como crônicas cotidianas pelos temas que abordam em suas letras. Sobre ouvir diariamente ou não, a conversa é outra.

Antes de ser escritor e professor, Cristhiano fez Direito e foi o pior estagiário de Direito Comercial do Recife, segundo ele mesmo, e não chegou a concluir o curso. Filho de professores, Cristhiano não queria a educação, mas se projetava dando aulas. “Eu fui percebendo, Isis, que meu caminho era a literatura e o livro. E um caminho viável pra você viver de literatura e de livro é a educação.”

E muito do que se pode aprender em sala de aula vem da literatura, além do livro didático. Cristhiano toca num ponto sobre isso: a visão de mundo sobre a cultura. Vimos recentemente muitos livros sendo censurados em sala de aula e universidades, e para Cristhiano, falta mediação, em especial quando estamos falando de educação infantil.

“Há uma visão paranoica sobre a cultura e sobre as humanidades, sobre o papel do professor. É preciso entrar de mente aberta para entender o que seu filho e sua filha estão lendo e buscar conversar com o mediador, que é o professor. E confiar também, como diria minha colega e professora Marisa Lajolo, na inteligência da criança. Porque a criança não vai necessariamente fazer a leitura literal que o adulto está fazendo. A criança tem uma leitura muito mais inteligente, muito mais esperta do que a gente pode sequer conceber. Então me parece que o trabalho de mediação da leitura é o que está faltando.”

“A literatura é experiência. Então você pode ler um tratado filosófico e você vai adquirir conhecimento, mas você pode ler um romance ou ler um poema e esse poema também vai te transmitir um conhecimento. Transmitir uma experiência, vai te ensinar coisas novas para a tua sensibilidade, para os teus afetos.”, diz Cristhiano.

Para viver um pouco dessa experiência, é preciso imaginação. Ainda que o realismo, melhor amigo do autor que escreve sobre o fantástico, seja necessário, o realismo que é apenas descritivo não nos rouba um pouco a expansão da consciência?

“Olha, deixa a literatura falar por ela mesma, deixa os teus personagens serem vivos, deixa aquela cena respirar por ela própria, porque é aí que ela vai realmente transmitir a mensagem que você quer. Eu acho também que a gente vive momentos de muita crise. Políticas, sociais e eu acho que é uma ansiedade de tentar intervir de forma imediata, tentar mudar as coisas que leva para um didatismo.”

E escrever nas redes sociais pode ser literatura? Cito aqui uma outra entrevista que fiz, em que a Carolina Casati me disse que, sem redes sociais, seu projeto não existiria. No panteão da iluminação artística dos grandes cérebros, quem produz pras redes sociais não faz literatura. Será? “As redes sociais são uma vitrine dos discursos do mundo, da sociedade, então vai ter todo tipo de discurso ali, se cruzando, se tensionando. Se a gente pensar numa evolução, a gente passou muito tempo só com livros, depois a gente começou a apresentar coisas no YouTube, depois a gente foi pro Instagram. Se a gente pensar que isso é um formato diferente, inclusive de crítica, tem um monte de canal de Instagram”, me diz Cristhiano, para completar um raciocínio sobre relevância e balanço: “O ruim, porém, é quando os méritos estão desbalanceados. Muita gente com trabalho sério tentando ter relevância, e muita gente só porque tem seguidores, conseguindo avançar”. Como a gente resolve? “Políticas públicas profundas e sérias para reequilibrar esse campo da cultura”.

As redes sociais podem nos tirar desse lugar de imaginação ou talvez nos colocar num lugar onde a gente acha que temos tanta relevância que além das redes, que merecemos estampar capas de livros e estar em prateleiras? Nem todas as histórias talvez tenham essa força. Mas autoficção não é um problema, ao contrário, é um gênero que desperta muito interesse. Annie Ernaux ganhou um Nobel de Literatura para nos tirar um pouco do preconceito com as histórias que partem da gente. Mas, não são a partir de nós que partem todas as histórias? Elaborar o luto, o trauma, a escrevivência, a alegria. Além do mais, uma mulher que escreve sobre si ganhar o maior prêmio da literatura nos dá um símbolo muito potente já que não é sempre que as mulheres são convidadas a falarem sobre si.

E o professor e escritor não se separam: “Dá pra ser os dois? Dá. Às vezes o acadêmico está em evidência, às vezes o escritor. Mas a questão, como ouvimos sobre James Baldwin, é que não existe a separação.” Falávamos sobre como Baldwin é muitas vezes lido apenas como escritor ou como militante. Cristhiano já foi um forte militante da ficção como leitor – “Eu bato na porta das pessoas e digo assim: aceitas a palavra da ficção. Mas hoje, claro que isso é uma perspectiva antiga. Hoje eu acho que a não ficção e todas as suas formas são super interessantes também, embora eu continue lendo mais ficção do que qualquer outro gênero. E eu defendo também que a ficção é uma forma de conhecimento” – e como crítico, porque sempre recebeu muita pauta desse gênero. Mas entende que, tanto Baldwin quanto ele, professor, leitor, escritor e crítico, não se limitam e não existem um sem o outro, porque nascem da mesma essência. Literatura.

“Às vezes também as pessoas não conciliam as caixas. Tentam te colocar numa caixa só, quando na verdade é, sei lá, é um corredor. Pelo qual você transita de um lado pro outro.”