Indigenistas da Funai lançam carta aberta em defesa da proteção de índios isolados
Servidores temem paralisação das atividades do órgão
Nós, conjunto de servidores lotados nas Frentes de Proteção Etnoambiental (FPEs) da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), vimos, através desta carta aberta, nos dirigir à sociedade brasileira e às autoridades competentes manifestando nosso receio e preocupação a respeito das recentes medidas efetivadas pela gestão do Governo Brasileiro em relação à Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC).
A CGIIRC é uma coordenação eminentemente técnica, vinculada a Diretoria de Proteção Territorial (DPT) da FUNAI, sendo responsável pelo planejamento, supervisão e normatização das ações de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas isolados e de recente contato em todo o país.
Entende-se por indígenas “de recente contato” aqueles grupos que mantêm relações de contato permanente e/ou intermitente com segmentos da sociedade nacional e que, independentemente do tempo de contato, apresentam profundas singularidades em sua relação com a sociedade nacional, mantendo fortalecidas suas formas de organização social e suas dinâmicas sociais e políticas próprias, definidoras de sua relação com o Estado e a sociedade nacional, com alto grau de autonomia em relação a esta. O direito a manter esta autonomia, seja ela social, econômica, ambiental, cosmológica/religiosa é expresso nos Artigos 231 e 232 de nossa Constituição Federal, sendo-lhes este, portanto, um direito constitucional.
Já os “povos isolados” são aqueles grupos indígenas com ausência total ou parcial de contato direto e/ou indireto com a sociedade nacional envolvente, seja esta constituída regionalmente por outros povos indígenas ou segmentos populacionais não-indígenas. O Brasil é o país que concentra o maior número conhecido de povos indígenas isolados do mundo, com 114 registros reconhecidos pelo Estado em toda a Amazônia Legal, dos quais 28 registros são confirmados. Indígenas Isolados são povos ou fragmento de povos que optaram por diferentes estratégias de “isolamento voluntário”, em geral fundamentadas pelas experiências traumáticas de contato no passado, comumente marcadas por processos de violência física e cultural que não raramente incorrem em genocídio e/ou etnocídio. A estratégia do “isolamento” visa sobretudo a diminuição do grau de vulnerabilidade do grupo, por meio de maior controle das relações que estabelecem com outros agentes. Entre tais povos existem diferentes estratégias de isolamento, a depender dos contextos históricos, geográficos, políticos e ambientais envolvidos. Os povos isolados podem ser constituídos por grandes ou pequenos grupos populacionais (até mesmo por um único indivíduo remanescente de um povo inteiro), geralmente sobreviventes de sucessivos genocídios, massacres, perseguições e esbulhos territoriais ocorridos ao longo do tempo. Justamente por isso, lhes é assegurado o pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los, devendo ser respeitados seus modos de vida e organização social.
As políticas de Estado voltadas a estas populações são dadas, na prática, por meio das 11 (onze) FPEs presentes em todos os Estados da Amazônia Legal Brasileira1. Este universo de atuação direta está composto por 49 Terras Indígenas e áreas adjacentes, cuja superfície supera os 60 milhões de hectares, representando um pouco mais de 50% do total de áreas das Terras Indígenas no país, e 75% das Terras Indígenas na Amazônia Legal como um todo, incluindo áreas fronteiriças.
É neste vasto e diverso quadro territorial e social que estão localizadas as 18 Bases de Proteção Etnombiental (BAPE), 08 bases de apoio e inúmeros pontos de apoio operacional em toda a Amazônia. Apesar de tais estruturas estarem localizadas em lugares remotos e de difícil acesso, o Estado Brasileiro nelas se faz presente, praticamente de forma ininterrupta ao longo do ano, por meio da atuação das FPEs. Nessas regiões são realizadas inúmeras ações de proteção, localização e monitoramento de povos indígenas isolados, a partir do controle de ingresso em Terras Indígenas, por meio de ações de vigilância permanente e fiscalização em conjunto com outros órgãos públicos, e ainda, a partir do diálogo constante construído com o entorno indígena, e não indígena. Ademais, cabe às FPEs o papel de organizar e executar ações de promoção dos direitos dos povos de recente contato.
Em suma, as Frentes de Proteção Etnoambiental da CGIIRC/FUNAI, são as responsáveis pelo pleno desenvolvimento do Sistema de Proteção aos Índios Isolados e de Recente Contato – SPIIRC, compreendendo um conjunto de ações administrativas e operacionais por meio do qual é efetuada a política do Estado Brasileiro de proteção destes povos, de acordo com as diretrizes amparadas em diversos instrumentos jurídicos e normativos, nacionais e internacionais, sendo os principais a Constituição Federal de 1988 – Art. 231; o Decreto no 1.775, de 08 de janeiro de 1996; o Estatuto da FUNAI; a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais (ratificada pelo Brasil por meio do Decreto no 5051, de 19 de abril de 2004); a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) para a prevenção e a repressão ao crime de Genocídio (ratificada pelo Brasil em 04 de setembro de 1951 e promulgada por meio do Decreto 30.822 de 06 de maio de 1952) e a Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Além de reconhecer um maior número de registros de povos indígenas isolados, o Brasil também possui a política pública mais antiga no que diz respeito à garantia dos direitos desses povos à sua autodeterminação. Por conta da atuação da FUNAI, a política pública brasileira de proteção de povos isolados e de recente contato é hoje referência para outros países onde também há a presença destas populações.
Sempre é bom lembrar que a Democracia e o Estado de Direito são ancorados no estrito respeito à Constituição Federal vigente, não devendo confundir-se, portanto, ações e políticas de Estado imanentes da Constituição, com ações de Governo, estas suscetíveis aos ventos políticos que são contextuais. Neste sentido, a Constituição Federal de 1988 é clara e inequívoca em seu artigo 231, onde o Estado Brasileiro reconhece aos povos indígenas sua organização social, os hábitos, os costumes, as tradições e as diferenças culturais, assegurando-lhes o direito de manter sua cultura, identidade e modo de ser, colocando-se como dever do Estado Brasileiro a sua proteção. Tais direitos estendem-se, naturalmente, aos povos isolados e de recente contato, em especial dado ao seu alto grau de vulnerabilidade física (com relação à baixa imunidade às doenças externas, como a gripe), social e territorial.
Por fim, considerando que a CGIIRC, através de nós, servidores das FPEs, é a responsável pelo planejamento, execução e efetivação das políticas de Estado para os povos indígenas isolados e de recente contato, visando-lhes sempre garantir seus direitos constitucionais, entendemos ser nosso papel institucional, por meio desta:
1) A exoneração de um coordenador titular sem nenhum motivo conhecido representa um retrocesso histórico da política pública para proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato, visto que até então a indicação partia de uma decisão conjunta de todas as FPEs baseados em critérios técnicos e de experiência. Diante disso, a política, por seu alto risco de genocídio, exige a nomeação em caráter titular de um/a Coordenador/a- Geral que conheça largamente a pauta, tendo em vista tratar-se de cargo muito sensível e técnico que não pode estar vulnerável por questões políticas.
2) Deixar claro que tememos um efeito em cascata que possa atingir os (11) coordenadores das FPEs nos estados. As frentes são postos avançados da Funai em diversos pontos da Amazônia e têm o objetivo de monitorar de perto potenciais ameaças aos índios isolados e de recente contato. Muitos destes coordenadores vêm, ao longo de muitos anos, se aperfeiçoando em relação aos trabalhos junto a estes Povos e dedicam suas vidas para tal função, sendo dificilmente substituídos sem prejuízos para os povos em questão;
3) Enfatizar que os frequentes cortes e contingenciamentos orçamentários impostos à Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato impactam profundamente as ações promovidas pelas FPEs na qual enfrentamos uma escassez crônica de recursos humanos, agravada por sucessivas ameaças e ataques violentos à integridade física dos servidores e às Bases de Proteção, perpetrados por criminosos que insistem em invadir as Terras Indígenas protegidas;
4) Ressaltar especial preocupação com a crescente escalada de violência contra os servidores, sobretudo na região do Vale do Javari, onde constantes ataques à Base de Proteção Etnoambiental Ituí-Itaquaí sofreu 05 ataques por invasores desde dezembro de 2018, igualmente, o assassinato do colaborador Maxciel Pereira dos Santos, coloca em risco todo o trabalho desenvolvido há mais de três décadas pelo Estado Brasileiro através da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEVJ). E mais recentemente o ataque de madeireiros que resultou na morte do indígena Paulo Paulino Guajajara na T.I Araribóia, dentro da área de índios isolados no Maranhão. Devido a esta situação diversos servidores já vêm pedindo afastamento por questão de segurança;
5) Informar que o processo de fragilização das condições de trabalho das FPEs tem se agravado nos últimos meses pelos motivos supracitados, podendo levar ao risco iminente de paralisação das atividades das Bases Avançadas de Proteção Etnoambiental (BAPE), inviabilizando a atuação dos servidores e, consequentemente da Funai, em sua missão institucional de garantia e promoção dos direitos desses povos. Em razão disso invocamos a colaboração do Estado Brasileiro em proporcionar as condições de trabalho e segurança para que possamos executar plenamente nossas atribuições.
Almerinda Cordeiro Gomes – FPE Awa
Antônio Lima Saldanha – FPE Vale do Javari
André Neves – FPE Envira
Carlos Eduardo Ravazollo – FPE FPE Uru-Eu-Wau-Wau
Daianne Veras Pereira – FPE Awa
Edimar Firmino – FPE Envira
Guilherme Augusto Gomes Martins – CGIIRC
Guilherme Daltro Siviero – FPE Cuminapanema
Gustavo Sena de Souza – FPE Vale do Javari
Ilka Massumi Okada – FPE Madeirinha/Juruena
Iori Linke – FPE Cuminapanema
Jeferson Lima – FPE Envira
João Galdino de Medeiros – FPE Madeirinha/Juruena
Juliana Cabral de Oliveira Dutra – CTL VIII – Altamira – Povos de recente contato) Luciano Márcio Gazzani – FPE Madeirinha/Juruena
Luiz Rayone – FPE Envira
Marcelo Fernando Batista Torres – FPE Envira
Marco Antônio Fagundes de Paula Oliveira – FPE Madeirinha/Juruena
Marco Túlio da Silva Ferreira – FPE Vale do Javari
Marcus Boni – FPE Envira
Mariana Feijó – FPE Cuminapanema
Pablo Rodrigues de Brito – FPE Médio Xingu
Pâmella Reis – FPE Envira
Renan Sampaio – FPE Envira
Roberta Vicente Montanha Teixeira – FPE Cuminapanema
Rodrigo Santa Maria Coquillard Ayres – FPE Madeirinha/Juruena
Rui Fernando Sarges Carvalho – FPE Médio Xingu
Sérgio Ribeiro dos Santos – FPE Médio Xingu
Thiago Meirelles – FPE Envira
Vitor Cerqueira Góis – FPE Uru-Eu-Wau-Wau
Vitor Roger Nogueira David – FPE Vale do Javari
William Iafuri – FPE Envira
Wilson Medeiros – FPE Envira