Mulheres assustadas correndo pelas ruas, seus poucos pertences rapidamente jogados em malas e sacolas, os rostos mal cobertos com as mãos, todas elas sem ter para onde ir.

Despejo de trabalhadoras sexuais em Niterói ocorrido ilegalmente em 2014. Foto: Giorgio Palmera, Fotografi Senza Frontiere.

Este foi o saldo do fechamento de algumas casas ditas ‘suspeitas de prostituição’ no bairro Santana, em São Paulo, na semana passada. Segundo o que apurei com colegas, muitas das trabalhadoras da região são oriundas de outros estados, escolhendo atuar nestes estabelecimentos justamente pela facilidade da moradia. Sabe-se, portanto, que naquele momento ficaram repentinamente sem moradia. Mulheres, em sua maioria pobres, exercendo trabalho precário e, de uma hora para outra, despejadas dos espaços onde estavam morando sem terem a quem recorrer, isso sendo resultado de uma ação que à primeira vista alguém quem sabe pudesse comemorar como sendo uma ação de combate à exploração sexual. Esse é o resultado da ação, comemorada com orgulho pela delegada responsável em seu facebook.

A prostituição não é crime no Brasil, e nunca foi. No entanto – e aqui está o motivo de termos repentinamente dezenas de mulheres despejadas arbitrariamente de seus locais de moradia e trabalho – tudo o que gira em torno da atividade é criminalizado, obrigando as pessoas que a exercem a essa situação de incertezas e precariedade constante, além da sensação bastante concreta de que também elas estariam cometendo algum tipo de crime. E não é à toa: geralmente nesses casos, as mulheres são conduzidas às delegacias para depor, onde acabam registradas como prostitutas – registro que embora não as transforme em criminosas, devido ao forte estigma sobre a profissão pode muitas vezes interferir em suas futuras tentativas de abandonar a atividade.

Não é novidade para a maioria de nós o modo como essas coisas funcionam: se estabelecimentos deste tipo, apesar de ilegais, funcionam à luz do dia, é por que alguém paga algum valor para que sejam tolerados. E se alguém paga, sim, alguém recebe.

Desacordos comerciais ou o desejo de valorizar a área para especulação imobiliária regra geral estão por trás dessas ações de fiscalização e repressão à prostituição – amplamente apoiados quase sempre pela comunidade do bairro atingido. Podemos ver isso acontecendo agora mesmo em Santana, mas também no Red Light District em Amsterdã, que nos últimos anos teve mais de 150 vitrines fechadas por conta de um projeto de “revitalização” da área, criado pela prefeitura local. A ideia, segundo algumas entrevistadas, não seria exatamente acabar com a prostituição mas apenas transformar a o espaço em algo mais higienizado, palatável e seguro para os turistas, porém, sem abrir mão da imagem sensual e atraente do local.

Em verdade, nada disso é muito diferente do que vimos em Niterói em 2014, quando mais de 400 trabalhadoras tiveram seus locais de trabalho lacrados por policiais, muitas delas tendo sido roubadas, agredidas e violentadas na ocasião – fato que foi amplamente noticiado e denunciado sem até hoje gerar punições. Ou das ações de ‘limpeza’ perpetradas em Porto Alegre quando do governo Yeda Crusius no Rio Grande do Sul, que acarretaram na transformação do 4º Distrito em uma ‘zona fantasma’ que hoje luta contra o tráfico de drogas e criminalidade, levando à falência o comércio local que a duras penas tenta se reorganizar.

Todas nós, ou uma boa parte de nós, sabemos que não há boas intenções por trás das ações de gentrificação como a ocorrida, por exemplo, na chamada Cracolândia em São Paulo, e que contou com forte aparato policial e assustadora repressão aos moradores ou pessoas em situação de rua da região. Há mesmo alguns rumores (que não consegui confirmar mas não me parecem inverossímeis) sobre trabalhadoras sexuais atuantes na área estarem desaparecidas, em sua maioria mulheres trans e travestis. No entanto, preferimos calar sobre o assunto: aparentemente, se a repressão em determinado bairro servir para dizimar as trabalhadoras sexuais locais, ninguém deve se dar conta disso.

São as vítimas sobre as quais não queremos falar. Aparentemente seu desaparecimento, ao invés de revoltar às pessoas defensoras dos direitos humanos, causa mesmo certo alívio e silêncio assustador.

É por conta dos efeitos desastrosos das políticas de repressão à prostituição sobre as pessoas que a exercem – em sua maioria mulheres pobres e únicas mantenedoras de suas próprias famílias – que muitas organizações de defesa de direitos humanos – a Anistia Internacional dentre elas – tem sugerido há anos a total descriminalização do trabalho sexual ao redor do mundo.

As leis sobre a atividade na maioria dos países tem como principal objetivo justamente acabar com a atividade a partir de precarizar a vida de quem a exerce e empurrar mulheres para a clandestinidade e isolamento social. Como se pode perceber, as leis tem sido ineficazes no sentido de acabar com a atividade, porém bastante eficazes no que toca a precarizar a vida das mulheres envolvidas em trabalho sexual, e isso mesmo em países onde a atividade, exercida de modo independente, não configura crime. A grande questão: é possível exercer alguma atividade de modo completamente independente? Aparentemente não. A outra questão versa sobre a completa impossibilidade de extinguir uma atividade apenas a partir de leis, leis que se mostram profundamente desempoderadoras para as mulheres envolvidas neste tipo de trabalho.

Embora eu possa reconhecer a utopia sobre banir o trabalho sexual como uma utopia válida e, em certo sentido, uma bela utopia, eu não posso deixar de perceber a distopia contida nesta ideia aplicada no mundo em que vivemos hoje.

Em um momento em que as políticas de austeridade sufocam a cada dia mais as pessoas pobres mundo afora, em que o desemprego é ameaça constante e mulheres seguem precisando sustentar as suas famílias haja o que houver, a utopia sobre banir a prostituição do planeta apenas empurrará mais e mais mulheres para a clandestinidade e condições cada vez mais precárias de vida e trabalho. Eu sequer vou entrar em questões sobre os trabalhos que o patriarcado exige que mulheres forneçam sem nada cobrar, posso deixar isso para uma próxima ocasião. Fato é que imaginar que em tempos de crise mais e mais mulheres recorram ao trabalho sexual para conseguir o sustento não é delírio, e de algum modo se precisa garantir um mínimo de segurança para essas pessoas.

A ideia de legalizar totalmente o trabalho sexual não significa que devemos deixar de cobrar dos governos políticas públicas sobre mais opções de escolha para todas as mulheres ou salário igual para trabalho igual – apenas significa que por um momento deixaremos de punir mulheres por terem tido poucas escolhas na vida.

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

FODA

Qual a relação entre a expressão de gênero e a violência no Carnaval?

Márcio Santilli

Guerras e polarização política bloqueiam avanços na conferência do clima

Colunista NINJA

Vitória de Milei: é preciso compor uma nova canção

Márcio Santilli

Ponto de não retorno

Márcio Santilli

‘Caminho do meio’ para a demarcação de Terras Indígenas

Dríade Aguiar

Não existe 'Duna B'

SOM.VC

Gatunas: o poder da resistência e da representatividade na cena musical Paraibana

Jade Beatriz

CONAE: Um Marco na Revogação do Novo Ensino Médio

Ediane Maria

O racismo também te dá gatilho?

Bancada Feminista do PSOL

Transição energética justa ou colapso socioambiental: o momento de decidir qual rumo seguir é agora

FODA

A potência da Cannabis Medicinal no Sertão do Vale do São Francisco

Movimento Sem Terra

É problema de governo, camarada

Márcio Santilli

Caldeira oceânica

André Menezes

Claudia Di Moura por Claudia Di Moura: Uma atriz afro-indígena a serviço da arte

Dandara Tonantzin

Quem cuida das mulheres que cuidam?