Foto: Mídia NINJA

Os dados do IBGE são escandalosos: 8 milhões de imóveis desocupados; 7 milhões de famílias sem teto. Uma estimativa por baixo de 30 milhões de pessoas que, neste país, não exercem seu direito constitucional à moradia digna. Enquanto isso a Cidade converte-se em negócio e subordina a essa visão todas as relações da convivência urbana.

O impacto dessa constatação potencializa-se quando consideramos que hoje 85% da população brasileira mora nas cidades. É a cidade o barril de pólvora em que a desigualdade histórica da sociedade brasileira pode explodir.

A mim me assombra que os setores de opinião, inclusive seus estamentos jurídicos e políticos, que hoje se mobilizam no debate da ética pública, ostentem essa gigantesca insensibilidade diante do que para mim é a expressão mais acabada de falta de ética: a absurda injustiça edificada na materialidade das cidades brasileiras.

A essa inércia perversa contrapõe-se o Manifesto do Movimento “Em defesa da construção social de um Projeto para as Cidades do Brasil”:
“É inadmissível manter por longos anos imóveis vazios, bem servidos de infraestrutura resultante do investimento público, acumulando mosquitos e lixo, enquanto milhões e milhões de pessoas sem alternativa de moradia, ocupam áreas de proteção ambiental como beiras de rios e córregos, morros íngremes, dunas, mangues, áreas de risco de desmoronamentos. Temos instrumentos legais suficientes para resolver esse gigantesco problema social e ambiental.”

Essas considerações têm sua atualidade renovada diante da tragédia que na madrugada do dia Primeiro de Maio incendiou os 24 andares do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo Paissandu, no centro de São Paulo: fez vítimas fatais (no momento, pelo menos cinco) e tornou (agravadas) vítimas circunstanciais as cerca de 180 pessoas que ocupavam o prédio como seus moradores “ilegais”.

A tragédia física foi logo sucedida pela tragédia simbólica na forma de declarações de políticos (talvez Doria tenha sido o mais infeliz…) e de postagens nas redes sociais criminalizando as vítimas como culpados pela desgraça que sobre eles incidia. De quebra, criminalizando a luta urbana pelo direito à Cidade, na sua acepção mais basilar: o direito à moradia.

Imediatamente à tragédia, no próprio dia 02 de Maio, seis entidades, representando as tantas que se constituíram na luta pela moradia – a Central de Movimentos Populares, a Frente de Luta pela Moradia, a União dos Movimentos de Moradia, a União Nacional pela Moradia Popular, o Movimento dos Trabalhadores sem Teto e o Movimento Moradia para Todos – procuraram a Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados, convidando-nos para uma reunião no dia seguinte, 3 de Maio, na Ocupação São João 588, reunião que efetivamente realizou-se na data marcada.

Na presença de parlamentares, representantes destes e de outros movimentos fizeram ouvir tanto o seu clamor por justiça como a defesa de uma agenda construída com o Secretário Municipal de Habitação de São Paulo Fernando Chicre, prestigiando uma visão não higienista de direito da população à moradia no centro urbano e, particularmente, assumindo uma perspectiva de “qualificação da segurança” das ocupações no centro de São Paulo, antes que uma visão sobre “avaliação de riscos”, que pode ser o pretexto para “reintegrações de posse” que desalojem os moradores de suas habitações. Em reunião subsequente com o Secretário Fernando Chicre, que também recebeu os representantes dos movimentos, pactuamos o fortalecimento dessa agenda, que inclui o atendimento emergencial das vítimas do incêndio, além da apresentação de uma solução definitiva para os seus problemas de moradia em um prazo de 30 dias.

Algumas das minhas impressões após essas reuniões:

1. A robustez e a consistência dos movimentos que fazem a luta e que há quase quatro décadas constroem em São Paulo uma alternativa decente para o exercício do direito de toda a população (marcadamente a população mais despossuída e mais vulnerável) à moradia no centro da cidade.

2. A excelente qualidade de vida obtida em várias destas ocupações mediante o esforço de organização comunitária e de compartilhamento de bens escassos, aproveitados com criatividade, dignidade e um profundo senso de solidariedade humana.

3. O papel das mulheres como lideranças nesses processos de reinvenção da vida social e de retomada da cidade como um espaço que se afirma segundo a imaginação de seus moradores.

Ao tempo em que devemos exigir o cumprimento da avançada legislação urbana brasileira, conquistada neste início de século XXI com tanto “sangue, suor e lágrimas”; ao tempo em que devemos exigir a retomada do investimento público em habitação popular, com o retorno do Programa Minha Casa Minha Vida, especialmente de sua Faixa 1; ao tempo em que devemos alavancar o Movimento por uma Frente Ampla pelas Cidades Brasileiras; quero dizer que vejo essa luta com muita esperança.

Neste dia 07 de maio, em que completamos 30 Dias de Luta e Resistência por #LulaLivre, o esforço em favor do fim do golpe e da restauração da democracia no Brasil inspira e reforça o movimento por uma Cidade Justa e Livre, como espaço de convivência digna da população deste país.

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