Nos vemos diante de campanhas rapidamente desenvolvidas e disseminadas que levam a milhões de pessoas a falsa narrativa da “ideologia de gênero” para impedir que mulheres e pessoas LGBT obtenham vitórias.

Foto: Emergentes

Em matéria do Estadão de agosto deste ano, Silas Malafaia afirmou que os evangélicos não vão negociar “ideologia de gênero” em 2018. E ameaçou o Governador Geraldo Alckmin e o Prefeito João Doria: “Quem quiser fazer graça na eleição para o politicamente correto, vai embora, segue seu caminho”, disse o pastor.

Esse poderia ser um texto sobre o uso absolutamente inapropriado do termo “evangélicos” que faz o Pastor Malafaia. Aliás, uso não. O sequestro do termo que ele despudoradamente realiza repetidas vezes. Os evangélicos são um grupo plural, diverso. E essa bancada que se diz representá-los é infinitamente mais conservadora que a base que diz representar. Que faz refém.

Mas este é um texto sobre outra coisa. É um texto sobre “ideologia de gênero”. Trata-se de uma narrativa perigosa que nasceu na Europa, emerge agora na América Latina em tempos delicados e sempre obtém sucesso em mobilizar rapidamente uma para fazer avançar agendas conservadoras ou barrar iniciativas progressistas.

O plebiscito colombiano que decidiu sobre um histórico processo de paz e teve como fim a vitória do “não”, foi de fato decidido nesse submundo da desinformação de onde emergem as narrativas da tal “ideologia de gênero”. Mensagens em redes sociais circularam por todo o país alegando que esse era o perigo real por trás do acordo, que este feria valores considerados alicerces da sociedade colombiana, como a família ou a liberdade religiosa.

Um video do Ex-Procurador colombiano Alejandro Ordóñez feito para o jornal A Semana, por exemplo, viralizou. No material que circulou por todo o território semanas antes do plebiscito, Ordóñez bradava: “de Havana, estão desenhando políticas públicas baseadas nessa concepção para redesenhar nosso ordenamento jurídico, a família, o matrimônio, o direito à vida e a liberdade religiosa”.

Pausa para uma nota relevante: o medo de que Havana seja o bastião da “ideologia de gênero” é absolutamente infundado. A luta contra o machismo, a homofobia e a transfobia sempre se fizeram necessárias desde a Revolução Cubana, há inúmeros discursos públicos de Fidel Castro que comprovam esta afirmação. De acordo com a ONG cubana Centro Nacional de Educación Sexual – CENESEX, a hostilidade da população cubana diante da diversidade sexual vem diminuindo, mas a passos lentíssimos. Não se trata de um exemplo de um país que aplicaria à risca a tal cartilha da “ideologia de gênero”. Nada há de verdade no que diz o Ex-Procurador Colombiano. Trata-se apenas de uso político de termos que, sabe-se, mobilizam o temor da população. E para fins claros: demonstrar força e ter a vitória política que deseja nas urnas.

A “ideologia de gênero” nasceu como conceito aplicado por sociólogos europeus na década de 1930. À época, seu uso se restringia às comunidades epistêmicas. As primeiras experiências de sucesso com relação ao uso do termo “ideologia de gênero” com fins políticos datam do início da década de 2010 e se deram em solo europeu. Grupos contrários mobilizaram suas bases contra reformas que se traduziriam em direitos para mulheres e a população LGBT na Espanha, França e Polônia. Em 2012, a administração francesa de Hollande teve que lidar com os boulevards de Paris tomados por faixas que estampavam: “Un papa, une maman”, isso é o natural. O resto é “ideologia de gênero”.

Em todos os casos, conservadores fizeram uso do termo para fins semelhantes: convocar manifestações e mobilizar eleitores contra falar de papéis de gênero nas escolas e a conquista de direitos como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e adoção por casais homoafetivos. Já viu esse filme? São fenômenos idênticos à mobilização baseada no medo de uma suposta corrupção dos valores das nossas sociedades que têm tomado as ruas e as redes no México, no Peru e no Brasil, entre outros países vizinhos.

Em todos os casos, nos vemos diante de campanhas rapidamente desenvolvidas e disseminadas que levam a milhões de pessoas a falsa narrativa da “ideologia de gênero” para impedir que mulheres e pessoas LGBT obtenham vitórias.

Enfim, ao observar as inúmeras conquistas daqueles que fazem uso da narrativa mentirosa da “ideologia de gênero” com fins absolutamente pragmáticos de barrar processos políticos que não os interessam e provar sua força na balança de poder local, nacional e regional, a América Latina vive um momento atroz. Estamos sob ameaça e o Pastor Malafaia não tem receio algum em dizê-lo.

E não deixa de ser curioso: o termo “ideologia de gênero” é frequentemente repetido pelos nacionalistas que se opõem veementemente ao que chamam de globalismo. Mas lançam mão exatamente desse termo, que compõem um repertório global – em clara articulação com outros grupos de extrema-direita pelo mundo.

Aqueles comprometidos com os direitos humanos, justiça, igualdade devem se dedicar ao enfrentamento da narrativa da “ideologia de gênero”. Evangélicos ou não. Mulheres e homens. Trans. Todas e todos.

Sob pena de termos eleições ano que vem em toda a América Latina pautadas por inverdades, elegendo conservadores perversos, sofrendo com a naturalização da intolerância e do ódio e assistindo impotentes o retrocesso levar os poucos direitos conquistados pelas minorias em nossa região.

Temos eleições em muitos países latino-americanos no ano que vem. Bichos escrotos saíram dos esgotos. E agora querem os palácios, subir as rampas, as faixas de presidente. Deixaremos?

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