Cracolândia: ‘Aquarius’ da vida real
Na vida real o assédio só começou e esse ‘filme’ não deve acabar tão cedo.
O filme Aquarius, do diretor Kleber Mendonça Filho, lançado em 2016, foi um dos longas nacionais mais elogiados e premiados dos últimos anos. Gravado em Recife, aborda o tema da gentrificação e da especulação imobiliária.
Em miúdos, conta a história da personagem de Sônia Braga, Clara, que mora em um pequeno e antigo edifício chamado Aquarius, localizado na orla da praia. Uma empreiteira quer comprar o lugar, e envia seu funcionário Diego, interpretado por Humberto Carrão, para assediar os moradores, com relativo sucesso.
No entanto, Clara resiste e luta pela permanência em sua casa até o fim.
A fórmula do filme, apesar de se passar em um ambiente de classe média alta, é bem conhecida. O final é que não. A resistência infinda é, necessariamente, impossível em alguns casos. Não por falta de vontade.
Imagine o seguinte: você mora em um pequeno hotel, paga 700 reais de aluguel mensal, faz alguns bicos para sobreviver. É uma terça-feira, 13h, tudo está normal. Você vai ao banheiro. Está no meio do negócio e, de repente, um trator do lado de fora arrebenta o muro que cai na sua perna. Nem a Sônia Braga resistiria.
A situação é bem real, e aconteceu na terça-feira (23) na rua Dino Bueno, em São Paulo. Supostamente “sem querer”. Tão inocente quanto o próprio diabo.
O ‘Aquarius’ da vida real, no entanto, estava cercado por mais de uma dezena de Guardas Civis Metropolitanos (GCM) da Inspetoria de Operações Especiais (IOPE), que após o “““““acidente””””” impediram os moradores até mesmo de recolher os seus pertences e alimentação. Foram relegados a 1/3 de um galpão térreo. Nem o espaço inteiro puderam usar porque, também por causa do “””””acidente””””, o local foi interditado e teve os serviços de água e luz suspensos.
Sim, Aquarius era fichinha.
“Aí, mano, falando a verdade, é o seguinte. Sabe porque você quer que a gente saia daqui? Pra demolir tudo. É isso”, disse um morador ao chefe de gabinete da subprefeitura da Sé, Vitor de Almeida Sampaio (comparado ao longa metragem, poderia ser o personagem de Humberto Carrão no filme).
De acordo com os moradores, ninguém os procurou após o ocorrido. Ao cair da noite, às 21h, uma onda de súbita humanidade parece ter entrado na Prefeitura Regional da Sé, e então, mandaram uma assistente social para ver a situação. Ao fim arrumaram um albergue “em que só ficarão vocês, com comida, água e camas”. Só faltou o Netflix.
Os moradores bateram o pé, a óbvia resposta foi: “não vamos sair daqui”. Não abririam mão do que foi pago com muito suor.
Oriundo do sistema penitenciário e cozinheiro de primeira, João (nome fictício para um dos moradores que preferiu não se identificar) falou da treta que é para conseguir viver ali. “Qualquer coisa que me der pra fazer, eu faço bonitinho, mas não consigo emprego, vivo de esmolas na rua”. Conta que o dinheiro vai todo para suas necessidades domésticas. “Cuido de dois cachorros e tenho que dar comida para eles. Tem a minha mulher, eu e ela fumamos (cigarro, para não ter preconceito distorcendo fala), e às vezes ela toma uma cachacinha. Tudo que eu tenho é para pagar aluguel e isso, cara”.
Ele conta como foi a Operação realizada pela Prefeitura e pelo Governo do Estado no último domingo (21) no que eles chamaram de “Fim da Cracolândia”.
“Eles [PMs e Policiais Civis] não fazem distinção de morador e usuário. Entraram aqui apontando fuzil na cara de todo mundo. Parecia uma rebelião. E eu sei bem o que é uma, já passei por três.”
“Eles não têm o direito de entrar na casa de trabalhador e enfiar arma na cara de ninguém. Nem de sair enquadrando trabalhador só por estar nas ruas. São esses GCMs aí. Ontem mesmo, o rapaz estava só parado aqui na porta de casa e foi levado para a DP. Isso não é certo”, seguiu contando revoltado.
Não foi excessão
Desde então, diversos imóveis foram destruídos e outros tantos lacrados pela Prefeitura, que não apresentou documentos e nem avisou os moradores sobre as ações. Maria (nome ficctício), que tem um comércio na região, também conta dos absurdos que vivencia:
“O meu bar foi aberto na operação [da PM e Polícia Civil]. Quando eu cheguei, eles não deixaram eu passar para ver a situação. Quando foi na segunda-feira que fui ver, não tinha nada, só a geladeira e a porta arreganhada. Eu tenho o bar há mais de um ano, e essa é a segunda vez que acontece. Da última vez [que houve operação] fizeram a mesma coisa. Aí pagaram bolsa aluguel de 400 reais durante um tempo, e depois mais nada. Como é que eu vou viver, sendo que eu trabalho ali e dependo disso?
Eu sou trabalhadora, vendo água, refrigerante, cigarro, cachaça, e não tem mais nada lá. Aí quando a gente entrou para limpar,o GCM ainda veio enquadrar a gente. Não é certo isso, mãe de família tomar enquadro desse jeito! Eu fiquei brava e eles falaram que vão fechar o bar. Tenho dois filhos para manter, como vou fazer? Estou perdendo a moradia e o emprego, estou sem nada”.
Enquanto isso, a treta dos moradores do hotel com o chefe de gabinete continuava.
Acuado e gravado por todos os lados, Vitor até tentou argumentar no tom mais politicamente correto possível, mas, a paz já tinha acabado. Depois de ouvir as desculpas, um morador retrucou: “Faz assim, porque você não deixa a sua cama quentinha na sua casa para dormir em um albergue?”. Disse olhando tão profundamente nos olhos do cara que ele pareceu até desistir e saiu caminhando depois.
“Se você quer ajudar, traz comida, colchão, cobertor, religa a luz e a água, isso sim é ajuda”, completou a proprietária do imóvel.
A presença do vereador Eduardo Suplicy (PT), do ex-secretário de saúde, Alexandre Padilha (PT) pra acompanharem o caso também gerou um burburinho. Pressionou o chefe de gabinete da Sé a se coçar e conseguir diversos colchões para os moradores pelo menos não dormirem na situação precária em que se encontravam.
Nesta quarta-feira (25), o prefeito João Doria e o governador Geraldo Alckmin iriam anunciar as Parcerias Público Privadas para “revitalizar” o bairro. Advinha o que aconteceu quando a galera dos prédios descobriu? Os dois saíram escorraçados, pisando bem ligeiro pra não tomar pedrada. Depois, os moradores ainda fecharam a Av. Rio Branco com faixas e fizeram uma manifestação pela tarde.
A luta é desigual, mas eles estão com sangue nos zói.