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Há vários motivos que levam a América Latina e, ainda mais especificamente, o Brasil para o topo do ranking mundial de assassinatos cometidos por armas de fogo. Um desses fatores é o econômico, claro, mas também é importante observar como uma parte da composição desse cenário se encontra profundamente arraigada na nossa cultura.

Isso fica muito evidente quando, nas redes sociais, os comentários mais curtidos para notícias de violência em comunidades pobres são quase sempre de apoio às ilegalidades cometidas. É que, enquanto a renda no Brasil é similar a de outros países em desenvolvimento, aqui, de maneira peculiar, uma parcela da população frequentemente legitima o extermínio de outra, sua própria compatriota, sob o pretexto uma suposta “garantia da ordem” que nunca se realiza.

Por um lado, temos falta de emprego e desigualdade de renda e de condições de vida, que com certeza facilitam a absorção de parte da nossa juventude pela cadeia do crime organizado; por outro, temos uma herança colonial e, acima de tudo, um racismo institucional que sempre dividiu a população entre aqueles/as que deveriam ser protegidos pelo estado por todos os meios, inclusive ilegais e arbitrários, e aqueles/as cujas vidas são consideradas descartáveis nesse processo.

E há, junto a tudo isso, um discurso que legitima essa ordem da desigualdade, inclusive, por meio da violência institucional que é consentida quando seu alvo é a parcela da população que ocupa o andar de baixo.

Estatísticas mórbidas do último mapa da violência são categóricas nessa definição. Quase 70% das vítimas de mortes por armas de fogos são negras, a maioria é de jovens e quase todos morreram nas periferias e nas favelas. As mesmas porcentagens se repetem quando investigamos a composição social da população carcerária. E, certamente, não é porque há na parcela negra e pobre uma vocação natural para o crime.

De fato, o que ocorre é que, primeiro, a pobreza se reproduz entre a parcela negra da população como projeto ideológico, já que o poder público, desde a abolição da escravatura, se recusa a traçar um plano de metas com objetivos claros para inclusão social. Depois, opera a seletividade do sistema penal, que inclui desde os códigos de leis, redigidas por um legislativo historicamente branco, rico e conservador, até os órgãos de fiscalização e controle, como é notório o poder judiciário, que pune implacavelmente uma parcela dos réus enquanto legitima a impunidade velada de outros.

Por essas análises, fica evidente como, através de uma cultura de exclusão e privilégios, a injustiça, na base da epidemia de assassinatos, se reproduz com aparência de legitimidade, como se fosse a coisa certa. A violência ocorre no cenário onde ela é demandada, e não como imposição.

Isso me coloca na posição que tenho hoje. Venho reivindicando uma tradição de pensamento sobre segurança pública que, além dos escopos tradicionais, como policiamento e controle de armas e drogas, se ocupa de ligar a esse problema questões como a ideia socialmente construída no Brasil sobre comunidades e favelas, o racismo, o sexismo e a parcialidade do poder punitivo.

Embora muitos acusem esse debate (que é o dos direitos humanos, o da compreensão mais completa dos sujeitos) de ser mera defesa dos “direitos de bandidos”, a minha convicção é no sentido oposto, isto é, de que só através da garantia plena de direitos, sem discriminação e com justiça social, é que vamos criar uma consciência que desarma o aparato da guerra interna e da violência.

Eu escrevo esse artigo enquanto a comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, vive dias de tiroteios intensos. Meu coração dói. Ao mesmo tempo, travamos uma batalha na Câmara contra manobras que visam garantir a impunidade de políticos envolvidos em grandes esquemas de corrupção. São fatos ligados!

O que acontece nas comunidades pobres no Brasil é um consequência da dominação do poder por uma pequena parte que aliena uma grande outra. E não da mais para ser assim.

Por nenhuma pessoa a menos, temos que pôr um basta dessa epidemia de violência. A mais ampla luta que faremos nesse sentido é na política.

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