Foto: Marcelo Costa Braga

Por Eduardo Sá

O Samba do Trabalhador já virou um patrimônio da cultura popular carioca. Criado há quatorze anos, é referência do samba mesmo sendo às segundas-feiras e iniciando de tarde. Gente de tudo que é lugar, inclusive de outros estados e países, lota toda semana o Clube Renascença, que fica no Andaraí, zona norte da cidade. Embora seja um projeto coletivo, boa parte do seu sucesso se dá graças ao empenho do músico Moacyr Luz.

O sambista tem em sua bagagem mais de cem músicas gravadas com todos os ícones do samba nacional: Beth Carvalho, Nei Lopes, Wilson Moreira, Wilson das Neves, Paulo César Pinheiro e tantos outros. Após a entrevista (30/05), realizada em sua casa, foi gravar com o Zeca Pagodinho. Tem dez discos gravados e aos 61 anos não para, já tocou em outros países e vive na ponte área dos estados brasileiros.

É considerado pelo pessoal da antiga, mas também apadrinha os mais novos. Todos os expoentes da nova geração do samba carioca já fizeram parceria com ele, muitos deles inclusive contaram com seu apoio no início da carreira. Na entrevista, ele fala como o samba está num momento de continuidade cultural e muita qualidade musical. Mas não tem como falar de cultura e não falar de política, e é com muita preocupação que ele vê a atual conjuntura nacional. Os artistas e intelectuais, segundo ele, estão sendo perseguidos por um pensamento radical e pela polarização extrema em nosso país.

Eduardo Sá: Qual o momento histórico do samba hoje?

Moacyr Luz: Minha visão é sempre particular, não de mercado, e vejo uma geração nova aí muito importante. Na minha época era completamente diferente, a arte vinha primeiro que o dinheiro. Há uns quinze anos veio o pagode com uma urgência de fama, uma espécie de status do samba, anel e cordão de ouro, carro importado, óculos ray-ban, um pacote inteiro. Hoje vejo pessoas como o João Martins, os meninos do meu grupo, preocupados com a música, com a continuidade do samba, a qualidade, como o Gabriel Cavalcante, o Nego Alvaro, Alexandre Marmita, Mingo Silva. Os meninos da Família Macabu, o João Duarte, Douglas Lemos, muita gente que bota a música na frente. Outra geração mais sucedida também, como João Cavalcante, Pedro Miranda, Mosquito, Moyseis Marques, que já é um escalão acima com Teresa Cristina.

Não essa coisa de fazer um refrão para ganhar público, como esse rapaz que infelizmente morreu e cantava Jenifer. São músicas efêmeras, que vêm com muita força e somem e o cara aproveita para consolidar sua vida. É como no futebol, os moleques do sub 15 já estão cheios de olheiros para ir a Europa com contratos milionários. O pai larga um emprego garantido para ser empresário do filho e precisa daquele dinheiro, então o garoto já joga pensando que está no Real Madrid mas está no Bonsucesso.

Adoro a minha vida, tenho meu apartamento próprio, tudo conquistado através da arte sem ter mexido uma vírgula para alcançar meu objetivo. Às vezes apareço com algum destaque, mas minha carreira é bem consolidada pela música e não pela celebridade. O samba é um dos raros estilos que não tem muito negócio de idade. Pode se renovar com uma Clementina de Jesus, que apareceu com 60 anos. Vários anônimos se tornaram músicos ao longo do tempo, como Walter Alfaiate. A própria velha guarda da Portela foi reconhecida depois através de Paulinho da Viola. Mas o momento dessa juventude é muito favorável, tanto que temos novos talentos com grande projeção. Já têm um público graças também a internet, essas plataformas e mídias sociais, já que não se vende mais disco. O cara faz um vídeo em estúdios alternativos e consegue chamar atenção do público. Não precisam estar necessariamente ligados a um modismo, como o sertanejo ou essas coisas universitárias.

ES: As mídias sociais fizeram muitas mudanças no mercado e no modo de fazer do profissional do samba?

ML: Têm influenciado nalgumas coisas de harmonia, hoje a coisa está mais arrumadinha. Digo no sentido dos arranjos, composição, preocupação com a nota e o canto não ser tão bruto, que é maravilhoso. Mas criou-se um padrãozinho de afinar um pouco a voz, que é fruto de todas essas mudanças do mundo. O sertanejo hoje tem orquestra, o Zeca Pagodinho que é meu ídolo toca com quatorze músicos no palco, sopros, teclados, etc. Tem todo um cuidado diferente nessas produções, na qualidade da música. Nelson Cavaquinho tem uma música insubstituível até hoje, às vezes com violão desafinado, e esse cuidado foi coisa de internet ensinando a mexer, gravar, etc. O futebol hoje tem uma coisa horrorosa como o VAR, que se fez necessária por causa da televisão. Perdeu um pouco a essência, mas não tem jeito. O que quero dizer é que essa nova geração para botar as coisas na internet precisa caprichar um pouco mais, enquanto os sambas de Argemiro e Monarco são eternos tocados com caixa de fósforo ou o que for. Essa geração já vem adicionada dessas possibilidades de fazer diferente.

ES: E em relação à profissionalização do samba, mudou muito?

ML: O músico tem que ganhar dinheiro igual você como jornalista, é um profissional como qualquer outro. O servidor público da prefeitura que ganha R$ 2.400,00 é a mesma coisa. Tem músico que toca quase todo dia, tem que estar em movimento tocando nos lugares do samba, eu mesmo faço uma quantidade de show que não mereço mais fazer. Nesta semana (maio) eu tenho seis shows, num dos dias a tarde estou em São Paulo e a noite em Santos, isso com mais de 60 anos. Tem mercado, mas não quer dizer que o cara vai ganhar dinheiro, ele vai sobreviver.

ES: Como é isso em relação às casas de samba, elas pagam mal?

ML: Cacique de Ramos talvez seja o que pague melhor, mas lá não tem bilheteria e fica um acerto com cada músico. Mas Carioca da Gema e tantos outros não estão mais a mesma coisa. Tenho escutado histórias de rodas de samba em casas bacanas que o dinheiro é muito pouco, o cara faz ali por insistência, por acreditar no trabalho e ser sua profissão. Essas casas renomadas não têm condições de pagar mais, porque o público não está comparecendo tanto. Ou ele ia inconsciente e agora escolhe, ou o dinheiro é pouco. O próprio Renascença onde fazemos o Samba do Trabalhador é uma exceção, aquilo está sempre cheio. É um mistério, uma junção de coincidências, num horário e dia atípicos, com descompromisso de repertório com outros segmentos, pois a maioria é de música autoral, que inclusive é cobrada.

ES: Fora a questão trabalhista do músico enquanto profissional…

ML: Lógico, a questão ideológica do grupo e investimos na carreira de todos. Nego Alvaro lançou músicas tem pouco tempo, o Mingo Silva está com disco na fábrica para sair, o Gabriel tem sua carreira, o Alexandre está crescendo cada vez mais, todos tocando com outras pessoas. Não tem nada de concorrência, cada um faz seu trabalho mas estamos juntos pelo mesmo objetivo. E tem o repertório e a maneira de tocar.

Não nasci em escola de samba, já morei em lugares muito pobres, como na Vila Aliança, e também dividi apartamento, mas sempre acreditando e o grupo também. Morei quase cinco anos com o Hélio Delmiro, e com ele aprendi coisas quando entrei definitivamente para o mundo do samba. Exagero às vezes nas introduções, em alguns acordes, mas não é arrogância, é o pensamento e uma proposta musical ao samba. Tem sido muito bem absorvido pelo grupo, as minhas brincadeiras e formas de tocar, que vai nos trazendo uma particularidade muito grande. Isso reflete no público, que tem a curiosidade do local e horário, mas se surpreende com a qualidade musical modestamente falando.

ES: Você fez recentemente um enredo político para a escola Tuiuti, é importante envolver política nas composições?

ML: No governo militar o enredo era ufanista à direita, falava sobre transamazônica, os heróis, Duque de Caxias, etc. Hoje se critica mais, os últimos sambas que fiz foram enredos críticos, assim como o da Beija Flor e da Mangueira.

Foto: Marcelo Costa Braga

 

 

 

É uma característica porque não há mais espaço para violar a liberdade, quando isso acontece a sociedade reclama.

 

Espero que continue reclamando, porque se bobear volta tudo à estaca zero.

ES: Essa coisa da canja dos músicos nos shows dos amigos, essa divulgação compartilhada dos eventos, essa dinâmica sempre teve ou essa galera nova que está trazendo isso?

ML: Produzi o primeiro CD do Samba do Trabalhador em 2005, mas só canto uma faixa. Convidei o Luiz Carlos da Vila, Zé Luíz do Império, Wanderley Monteiro, Luiza Dionizio, etc. Um grupo enorme, uma garotada que canta músicas como um sucesso através do Samba do Trabalhador. Sempre foi uma prática, faz parte da cultura do samba. Vai muita gente lá cantar, mas também existem muitos gaiatos. Pessoal filma, tira foto e publica depois, mas ele mesmo não se deixa cantar duas vezes e percebe que está sendo invasivo. Às vezes o cara canta uma música manjada, a gente até brinca: apelou hein! (risos) Eu mesmo uso isso com minhas músicas, vendo se o público está disperso e vou dosando, mas a música é minha.

O samba e MPB é tudo a mesma coisa. Acabei de publicar minha primeira música num canal de youtube que é lentíssima. Na concepção do iniciante é mais fácil virar sambista, dizendo que a MPB é mais sofisticada, mas isso é uma dedução utópica. Falam que Caetano Veloso é muito difícil e melhor é tocar Zeca Pagodinho, mas não sabem que é tão difícil ou mais. Aí começa a vir uma soma de equívocos, a achar que por ser sambista pode beber demais, desafinar, cantar bêbado, etc.

ES: Fale sobre esse estereótipo do sambista com a malandragem e a boemia.

ML: Existe desde que o samba é samba. É o malandro, dificilmente não bebe, o cara de fora acha que é isso, mas não é. Usam cordão sem sentido, chapéu, uma época usava navalha, terno de linho, mas não como a elegância da velha guarda da Portela. Digo aquele malandro do botequim, espécie de Zé Pelintra. Tem uma música do Wilson Batista, Lenço no pescoço, que é bem isso.

ES: O samba ainda carrega a questão de religião afro ou se perdeu?

ML: Acho que a religião tradicional evangélica está interferindo muito na sociedade brasileira. Não só na música, mas também na política e nas tradições. Hoje é dificílimo ver o doce de Cosme e Damião, antes era uma briga das crianças. Muito músico parou de beber e segue os dogmas daquela religião. Isso vem de uma soma de preconceitos a uma minoria, que diz que o cara é negro, sambista e a religião dele não será católica e sim candomblé, umbanda, etc. Porque era de quilombo, batia tambor, usava percussão, é preto e minoria, então é afro religioso. Mesmo assim acho que não se perdeu, porque está tudo muito interligado. Talvez esteja até mais explícita essa questão afro nas roupas e atitudes, pois antes ir a um terreiro de macumba ou espírita era quase proibido.

ES: Embora a intolerância esteja ainda muito presente.

ML: A intolerância em relação aos afro-religiosos, mas hoje também não toleram o intelectual. A pessoa que tem um pouco mais de informação está sendo perseguida, alguém que tenha opinião pessoal forte. São características de partidos extremistas, e se bobear o Brasil vai cair nesta situação muito mais breve do que se imaginava.

ES: Como você tem avaliado o atual governo?

ML: Um equívoco atrás do outro, uma pessoa totalmente despreparada, que em dois meses de governo tudo que falava revia, desmentia, voltava atrás. Está cortando todas as verbas ligadas à cultura, mas o país é feito de cultura depois é que vem o resto. Já participei de vários movimentos, chegou a hora de outros lutarem. Tem uma complicação também porque o público pode esperar o artista tocar na rua porque é de graça, não é tão simples.

No domingo (26/05) esqueci que tinha um ato pró Bolsonaro, e chegando a Campinas (SP) me senti excluído do Brasil. As pessoas berrando gritos de guerra com um ódio impressionante, meio nazista, você passava com uma camisa que não fosse amarela e verde e era tratado como um inimigo. Não sou inimigo do meu país, muito pelo contrário, sempre lutei por ele. Faço sacrifícios em função de cantar algumas coisas descentes, denunciar com a minha música, o que minha inspiração consegue traduzir. Eles se ocuparam das cores da bandeira brasileira, mas a gente não é vermelho, somos diversos e coloridos, isso é Brasil. A sensação é que se você expressar uma opinião contrária não é uma coisa democrática, você fala e é perseguido.

ES: E qual o papel da cultura neste cenário?

ML: Reagir o tempo todo. É o Chico Buarque ganhar o Camões, um filme ganhar um festival de Cannes, o teatro, essas coisas que vão fazendo resistência. Vai ter que voltar teatro de rua, popular, shows, a cultura é fundamental. A única coisa que salva um país é a cultura, educação para fazer uma pessoa na plateia reagir, fazê-la brigar pelo seu espaço.

As pessoas estão muito cegas, houve uma insatisfação com os governos anteriores mas a solução não é essa. Está havendo um esvaziamento, desmoronamento, do país.

Foto: Marcelo Costa Braga

Agora o presidente quer usar o poder que ele não tem para anular uma reserva biológica marinha em Angra dos Reis. Não pode ser assim: temos uma Constituição.

Perdemos a luz no fim do túnel. Nunca tive depressão por causa de política, e estou sentindo muito o que está acontecendo, triste de ver. Projetos sendo cancelados, nós sendo tratados como inimigos. Você faz música, teatro, cinema e é um inimigo do país. Aquele Marco Feliciano dizia que a mamata ia acabar, e tem essa questão da arma que é pavorosa. O pior é que ele prometeu isso e as pessoas deixaram-no cumprir, e muito poucos têm arrependimento. Não era para ter gente nessas manifestações dele. Em Campinas eu me senti acuado. Vi um depoimento um dia de uma menina que estava com a camisa da Marielle Franco e foi hostilizada, teve que sair protegida pela polícia.

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