Por Lucas Souza

A Capoeira se mantém ao longo dos anos não só como uma reconhecida exportadora da cultura brasileira para as mais diversas regiões do mundo, mas também, principalmente, como um símbolo da própria identidade cultural do país e uma das grandes representações do histórico de combate e resistência da população afrodiaspórica.

Misturando esporte, luta, filosofia, espiritualidade, dança e musicalidade, a arte da Capoeira envolve a associação de movimentos rituais executados em sintonia com ritmo ijexá – ritmo oriundo da cidade de Ilexá, na Nigéria, levado para a Bahia em meio ao grande contingente de iorubás sequestrados de suas terras no período da escravidão brasileira.

O andamento do toque ijexá leva uma estado transicional de consciência calmo, pacifico, prazeroso, possibilitando um jogo sem violência e bem cadenciado, permitindo aos parceiros estudo, análise, reflexão e criação de gestos rituais capazes de enriquecer o cabedal de reflexos de defesa, de esquiva e contra-ataques […]

Sob a influência do campo energético desenvolvido pelo ritmo-melodia ijexá e pelo ritual da capoeira, o seu praticante alcança um estado modificado de consciência em que o SER se comporta como parte integrante do conjunto harmonioso em se encontra inserido naquele momento. […]Procedendo como se conhecesse ou apercebesse simultaneamente passado, presente e futuro (tudo que ocorreu, ocorre e ocorrerá a seguir) e se ajustando natural, insensível e instantaneamente ao processo atual.

Mestre Decânio, no artigo “Fundamentos da Capoeira”

Entre os princípios que regem a arte da Capoeira, destacam-se: a liberdade de criação, a estrita obediência aos rituais, a preservação das tradições, o culto dos antepassados, a parceria, a disciplina e o respeito à tradição, aos companheiros e aos mais velhos como repositório da sabedoria comunitária.

Já entre as principais características do processo, estão: os movimentos rituais ritmodependentes, o ritmo ijexá regido pelo berimbau, os movimentos em esquiva, circulares e descendentes, a dissimulação de intenção, o estado de consciência modificado, chamado de “transe capoeirano”, e a permanência do conjunto: alerta, calma, relaxamento e autoconfiança.

A origem da Capoeira, em constante debate, se deu, provavelmente, no final do século XVI, em resposta à extrema violência à qual eram submetidos os escravizados, atingindo um alto grau de desenvolvimento no período de formação dos quilombos, principalmente no Quilombo dos Palmares. Parte dos pesquisadores acreditam que a cerimônia chamada n’golo, do povo Mucope, do sul da Angola, com movimentos semelhantes à Capoeira, remonta a sua verdadeira origem.

Palmares resistiu por mais de um século a pesados ataques do exército colonial e começou a tornar o regime escravista inviável na região do atual Alagoas, gerando até mesmo o temor de uma possível sublevação geral dos negros. Nesse modo de organização social, que permitia a liberdade de resgatar as diferentes culturas criminalizadas pelo regime escravista, a Capoeira se torna uma importante arte marcial com escopo militar utilizada como ferramenta para garantir a sobrevivência da comunidade e a libertação de cada vez mais pessoas escravizadas. Surge também, nesse período, o fenômeno da formação das Maltas de Capoeira, caracterizadas por grupos organizados que utilizavam a luta como ferramenta de desestabilização do sistema escravista com diferentes objetivos, incluindo ações políticas.

Durante as rodas, o ritmo é regido, principalmente, pelo toque do berimbau, pelo som do atabaque e pelos compassos das palmas, guiando os movimentos que simulam intenções de ataque, defesa e esquiva. Simultaneamente, os cânticos e ladainhas, fundamentais para a atmosfera moral, transmitem através do canto responsivo diversos ensinamentos, histórias e celebrações de heróis, envolvendo temas como a vivência dos escravizados e o respeito às divindades.

Esses elementos musicais e coreográficos, além de inseparáveis da Capoeira e essenciais para a dinâmica, ajudaram a mascarar a arte marcial que estava em desenvolvimento sob a aparência de uma dança em meio à proibição da prática de qualquer tipo de esporte pelos escravizados. Após a abolição, a Capoeira continuou na marginalidade, representando uma expressão de subversão, o que se manteve em certo grau mesmo depois de sua descriminalização oficial em 1937. A proibição dessa expressão se deu no contexto de criminalização de diferentes expressões relacionadas a vivência da população afrodiaspórica recém-liberta, assim como o samba e as religiões de matriz africana, como parte das medidas voltadas a preservar e atualizar os mecanismos de dominação estruturais e ideológicos escravistas.

Após ser reconhecida no Brasil pelo Iphan como Patrimônio Cultural Brasileiro desde julho de 2008 – conquista que reflete mais de oito décadas de combate contra o preconceito à prática – a Capoeira se torna Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco em 2014, passando a ser vista como uma filosofia de mundo, voltada a manter o respeito entre comunidades, promover integração social e salvaguardar a memória de resistência do povo vindo da África. A arte marcial atrai milhares de alunos estrangeiros ao Brasil e gera enorme prestígio e respeito internacional à diversos mestres, constantemente convidados a lecionar ou estabelecer grupos de ensino no exterior.