Por Lucía Naser, Gustavo Bitencourt e Gabriel Machado

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Publicado originalmente em La Diaria

Alguns escândalos recentes no Brasil relacionados a ataques de segmentos conservadores a obras de arte em nome da decência estão no centro de uma disputa ao mesmo tempo ideológica e econômica.

Não há nada de novo no fato de que a arte confronta o pensamento tradicional. No Brasil, podemos citar casos como o de Macaquinhos (2011), uma performance em que os artistas nus e em roda examinam seus ânus mutuamente, ou do artista Yuri Tripodi, que em 2014 fez uma intervenção urbana em que entrava na Catedral da Sé, em São Paulo, com um vestido de luto que deixava as nádegas à mostra.

Quando a arte entra em choque com os valores sociais, é de se esperar que esse embate produza reações. No entanto, o que vem acontecendo no Brasil parece não tanto uma reação a uma arte provocadora, e sim àquela que ocupa espaços institucionais ou públicos. Essas reações vêm sendo disparadas e amplificadas por grupos conservadores extremistas que conhecem e utilizam o potencial multiplicador das redes sociais, aliados a uma imprensa falida, que hoje depende quase exclusivamente de manchetes sensacionalistas para sobreviver.

Ainda que o poder dos grandes meios de comunicação continue sendo um fator decisivo na política brasileira, nesses casos eles operam mais na propagação do que na produção de informações, com equipes de redação reduzidas e com a exigência de publicar instantaneamente tudo que acontece, como caçadores de notícias de impacto, que logo são viralizadas.

A disputa pelo espaço público

As políticas culturais no Brasil vivem uma situação muito particular. Ainda que os aportes sejam públicos, podem ser administrados por instituições privadas, que fazem uso de leis de isenção fiscal. O Centro Cultural Banco do Brasil, o Santander Cultural e o Instituto Itaú Cultural são exemplos de instituições que revertem o dinheiro de seus respectivos bancos e aplicam em ações culturais. Elas vivem uma dicotomia, tendo ao mesmo tempo que relacionar-se com a comunidade artística, e assim cumprir com sua função de marketing cultural, e por outro lado, atender aos interesses de investidores e do público em geral.
Em 2006, o Centro Cultural Banco do Brasil decidiu encerrar uma exposição de obras da artista carioca Márcia X, falecida no ano anterior. A obra que causou polêmica intitulava-se Desenhando com terços e era um desenho de dois pênis entrecruzados, feito de terços.

Casos como o da recentemente cancelada exposição Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira, que foi organizada pelo Instituto Santander Cultural, indicam que o apoio à cultura queer com financiamento público desperta as reações mais acirradas. A mostra, que foi aberta no dia 15 de agosto deste ano, apresentava obras de figuras consagradas da arte moderna e contemporânea brasileira – Lygia Clark, Adriana Varejão, Cândido Portinari, entre outros – com uma curadoria que buscou ao mesmo tempo ser suficientemente transgressora para dialogar com a comunidade artística e ativista, e tradicional, a ponto de agradar a sociedade em geral e investidores. Não conseguiu uma coisa nem outra. Recebeu de início uma série de críticas de artistas e ativistas que não consideraram que a exposição representativa da diversidade que seu título sugeria. Mais tarde, o termo queer chamou a atenção de grupos conservadores, que promoveram protestos agressivos em frente à instituição e uma campanha de denúncias que se viralizaram rapidamente. O Santander optou por encerrar a exposição em 10 de setembro, quase um mês antes do previsto.

Algumas das obras tinham um caráter claramente desafiador dos modelos cristãos, como é o caso da tela Cruzando Jesus Cristo e Deusa Shiva, do artista Fernando Baril. No entanto, não foram só as intenções provocadoras dos artistas que geraram reações violentas.

O deputado da extrema direita Carlos Bolsonaro publicou um vídeo que disparava uma polêmica contra uma obra de Lygia Clark, uma das precursoras da estética relacional e da arte contemporânea no Brasil. A obra O eu e o tu (1967) propunha uma relação entre duas pessoas do público através de roupas completamente fechadas, contendo compartimentos com materiais diferentes (pedras, areia, etc.). Na exposição Queermuseu, os corpos humanos foram substituídos por manequins para efeito de conservação da obra. Independentemente disso, o vídeo publicado por Bolsonaro afirmava que a obra era um estímulo ao abuso sexual de crianças, alegando que elas seriam tocadas por adultos através das roupas.

Poucas semanas depois, a estética relacional foi motivo de outro ataque contra a arte em um espaço institucional, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Um registro em vídeo da performance La Bête, de Wagner Schwartz, tomou as redes sociais, novamente sob a acusação de pedofilia. Schwartz critica ali justamente a comercialização das obras de Lygia Clark, que hoje são apresentadas sem que se possa interagir com elas do modo como a autora intencionava.

Em La Bête, o performer se coloca como uma escultura viva, que pode ser manipulada pelo público. Embora a performance traga uma discussão sobre o colonialismo, a apropriação e o mercado de arte, o que gerou o escândalo foi o fato de que o artista estava nu e que o vídeo mostrava uma mãe e sua filha pequena tocando os pés dele.

A política das hastags e o isolamento do artista

Em meio a essa disputa territorial e simbólica pelo espaço da intelectualidade e pelo orçamento público, os artistas estão em clara desvantagem diante de técnicas agressivas de propaganda digital, que apostam em manchetes simplórias e linchamentos personalizados, com forte apelo emocional e que buscam gerar um engajamento imediato – tudo isso amplificado pela dinâmica das redes sociais.

Figuras emblemáticas do neoliberalismo brasileiro tiraram proveito da situação para reafirmar o ódio da população pelos artistas e pelo meio intelectual. Foi o caso dos prefeitos de São Paulo, João Dória, e do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que gravaram vídeos de autopromoção nesta última semana. Crivella, que também é pastor de uma igreja pentecostal, chamou a Queermuseu de pornografia e reiterou que não permitirá que ela seja levada ao Museu de Arte do Rio (MAR), hipótese que vinha se cogitando desde o encerramento da exposição em Porto Alegre. Dória, por sua vez, tratou do caso Schwartz, no tom um pouco mais moderado de quem tem interesse na presidência do país, mas nem por isso deixou de afirmar que a performance era “libidinosa” e “absolutamente imprópria” e que era preciso “respeitar aqueles que frequentam os espaços públicos”.

A adesão desse tipo de personagem à campanha contra a arte gera um refluxo de comentários virtuais e prolonga a presença das notícias nos grandes meios, o que deixa os artistas nocauteados.

É muito difícil uma mobilização da esquerda brasileira diante dessas situações. Um dos motivos é o seu próprio conservadorismo em relação às questões artísticas e identitárias, além do pessimismo e as rupturas que se instalaram desde o insucesso das manifestações populares de 2013, agravado com a destituição da presidenta Dilma Rousseff no ano passado.

Entretanto, é preciso nomear alguns posicionamentos dignos que partiram de instituições públicas, como o do secretário de cultura de São Paulo, André Sturm, que publicou um vídeo de cunho didático explicando a importância daquela que chama de “arte de risco”, ou do MAM-SP que se posicionou de forma contundente em favor da performance de Schwartz.

No Uruguai

Para o Uruguai, esses casos não devem ser vistos como uma situação completamente alheia. Ainda que a imagem de país progressista, laico e diverso tenha se propagado notoriamente, com auxílio do governo e da imprensa internacional, e que o poder da religião para definir a agenda dos debates públicos ainda seja pequeno, o panorama tem se modificado. O campo da cultura uruguaia viveu recentes polêmicas, como a que se criou em torno do plano de diversidade sexual, além da multiplicação de igrejas evangélicas e das marchas pela família e pelos valores tradicionais. Também são comuns os ataques feitos pelo próprio meio intelectual às políticas públicas que promovem manifestações artísticas e culturais diversas, em suas abordagens do corpo e da sexualidade.

No Brasil, talvez contribua para o isolamento dos artistas a própria natureza de sua atividade, ao menos quando esta busca a transformação de valores sociais. Há uma competição desleal entre a reafirmação de tradições fortes da milenar cultura judaico-cristã e qualquer ação que pretenda produzir alguma reflexão.

Os grandes meios também tiveram um papel fundamental na construção desse cenário ao longo da última década, com posicionamentos de oposição às políticas culturais dos governos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores, fomentando na população o sentimento de estar sendo roubada por uma classe artística imoral e elitista.

Cumplicidade diante da crise

Na história da América do Sul, momentos de grande conservadorismo foram campo fértil para a reinvenção artística. Artistas tomaram a frente em movimentos que resultaram no fim de regimes ditatoriais em países como o Brasil, Chile, Argentina e Uruguai.

Ainda que as relações entre arte e política tenham se modificado muito desde então, esses ataques recentes talvez sejam uma indicação de que há um potencial transformador na arte, o bastante para que ela seja temida e combatida.

Diante da imensa vantagem que detém o conservadorismo e a sua capacidade de difamar a esquerda e a arte, é fundamental fortalecer os apoios institucionais e a criação e o trabalho artístico, promover sua presença em espaços públicos e dialogar com as reflexões e dissensos que eles trazem.

Além disso, esse parece ser o momento propício para que artistas, que hoje se veem em uma situação de embate direto com os valores vigentes, tenham um olhar mais realista sobre a própria atuação, não apenas artística, mas como cidadãos. Será que existe algo de verdadeiro na percepção popular que se tem da arte como uma atividade de elite? Existem ações artísticas que possam ter de fato alguma repercussão no curso dos fatos? Será que essa batalha cabe no campo artístico, ou precisa estabelecer atuações também em outras instâncias? O que é arte política e que tipo de arte pode interferir de fato na situação política? Como as cabeças pensantes da comunidade artística podem agir diante de uma guerra que se luta na mídia?

As relações entre os ativismos que resistem a partir do campo artístico e dos movimentos sociais fazem parte da história do Brasil e do continente e precisam se estreitar neste momento de retorno do neoliberalismo, na sequência de um outro de aparente (ou breve) triunfo da esquerda. É preciso que outros segmentos da militância – e o meio acadêmico, que também tem sido alvo de linchamentos meticulosamente plantados na grande mídia – também percebam que essa disputa simbólica não atinge apenas artistas, mas o livre pensamento e expressão, o que incide de maneira direta sobre o cenário e as decisões políticas do país.

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