Por Camila Fróis / MAB

“Antes eu morava no Morro do Juramento, onde a gente sofreu a tragédia. De lá fomos para as pousadas e, daí, trouxeram a gente aqui para a Vila de Passagem, para a gente poder ficar oito meses. Esses oito meses viraram um ano e quatro meses que nós moramos no meio de rato, barata, carrapato e esgoto a céu aberto, as crianças com sarna…uma tristeza. Só Deus sabe o que nós passamos”, conta Rosivânia Santos. Ela é uma das sobreviventes do desastre climático que deixou 65 mortos e uma imensa destruição ambiental e material em São Sebastião, no litoral paulista.

Ao todo, 180 pessoas foram realocadas na Vila de Passagem construída emergencialmente no bairro Topolândia. Dezoito meses após a tragédia, finalmente, 24 das últimas famílias que seguiam na vila receberam suas moradias definitivas em um conjunto habitacional em Maresias, município vizinho. Três famílias ainda permanecem na vila à espera dos prédios prometidos num terreno no próprio bairro. 90% dos moradores da vila tinham recebido laudo vermelho da Defesa Civil para suas casas.

Condomínio construído pela CDHU em Maresias (SP). Foto: Pedro Salvador / MAB

As moradias estavam condenadas e, por isso, os moradores foram realocados na moradia provisória, onde deveriam aguardar uma nova casa, que seria construída através do Programa Minha Casa Minha Vida pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). Graças à reivindicação da Defensoria Pública Estadual, os atingidos conquistaram a gratuidade das casas para onde estão se mudando. A jornada de espera, porém, não tinha prazo definido para acabar e sequer garantia de que todos os atingidos seriam atendidos. Durante todos esses meses, as famílias aguardavam alguma informação sobre seu futuro: iriam ter direito a uma nova moradia? Onde? Quando? Teriam que pagar por elas? Ficariam próximos de seus familiares?

Modelo de violação de direitos humanos

Nesse tempo, além da falta de acesso à informação e participação, os atingidos abrigados na vila de passagem sofreram as mais diversas violações, incluindo problemas de insegurança alimentar e a própria submissão a condições de moradias insalubres: infestação de ratos e outros bichos, água contaminada – que causou diversas doenças de pele – e calor intenso em unidades habitacionais de 18 metros quadrados, onde viviam até seis pessoas juntas. Enquanto isso, o governador de São Paulo, Tarcisio Freitas, fazia propaganda da vila de passagem – anunciada por ele como um “modelo de sucesso de ação emergencial no Brasil”. Segundo anúncio feito em matérias pagas de jornal, as habitações tinham quarto, sala, cozinha e banheiro – tudo mobiliado.

Rosivânia Santos e sua família que dividia um quarto de 18 metros quadrados na Vila de Passagem. Foto: Francisco Kelvim

Na realidade, cada unidade tinha apenas um cômodo sem janela e um banheiro. “A situação da moradia era sufocante, porque a gente não tinha espaço. A gente não tinha um quarto, era tudo junto: quarto, sala, cozinha, banheiro, tudo era o mesmo cômodo. E, no meu caso, eu divida espaço com a família do meu filho, com meus netos, porque eles não conseguiram uma unidade pra eles. Ficaram com sarna, doentes. A nossa mente já era perturbada por conta do que nós passamos e a gente continuou vivendo nesse sofrimento, vivendo a ansiedade, tendo que tomar remédio para dormir, desabafa Rosivânia.

Para Artur Macfadem, integrante da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), as vilas de passagem se tornaram, na verdade, um modelo de violação de direitos humanos.

Outra atingida que foi realocada na Vila de Passagem e acabou de conseguir uma casa é Edilaine dos Santos, que também ressalta as condições hostis das habitações em que viveu. “A gente lutou muito por um lugar melhor, porque o que a gente viveu lá foi um caos. Era no meio de barata. As madeiras com que fizeram os cômodos já estavam podres, aí saía barata de tudo que é lugar. A gente dormia, as baratas passavam por cima da gente. A gente deixava a panela aberta um minuto, quando vê, as baratas já entraram. Mas, em meio às dificuldades e à luta, a gente estava guerreando até conseguir”, relata.

Diante da situação de desamparo, o Movimento passou a atuar no território para apoiar as famílias na luta por justiça e reparação, a partir da denúncia das violações, da articulação da comunidade e da interlocução junto à Defensoria Pública e ao poder público.

Reunião dos atingidos promovida pelo MAB na Vila de Passagem no Bairro Topolândia em São Sebastião (SP). Foto: Arquivo MAB

A defensora Patricia Maria Liz de Oliveira afirma que a presença do MAB na comunidade ajudou os moradores a organizarem suas reivindicações e conhecerem com mais clareza seus direitos. “A gente teve um diálogo constante desde a época da tragédia com o Movimento, porque a gente entende que essa articulação dos atingidos era muito importante para eles buscassem seus direitos básicos”, afirma Patrícia.

“A gente atuou também na escuta ativa das demandas das pessoas, organizamos reuniões e até atividades culturais para as crianças. Foi um trabalho de fortalecimento da comunidade, de presença mesmo, de ouvir, apoiar e dar ânimo pras pessoas nesse momento difícil, em que muitas estavam perdendo a esperança de voltar a ter um lar, emenda Artur.

O Movimento também mapeou os bairros de origem dos atingidos, para apoiá-los na reivindicação de serem realocados nos novos condomínios mais próximos dos seus trabalhos e núcleos familiares. “A gente morava tudo no mesmo bairro. São famílias de trabalhadores, que tiveram que sair por cima do telhado para poder não morrer… bebezinhos resgatados que hoje estão andando. Muita gente perdeu os empregos nesse processo da tragédia, por ter que faltar ao trabalho para cumprir burocracias necessárias para conseguir auxílio, uma cesta básica, ou mesmo uma casa temporária”, lembra Rosivânia.

Por isso, ela explica que agora, que alguns já conseguiram novos empregos, além da luta pela casa, as famílias também tiveram que lutar pelo direito de morar perto dos seus empregos e das suas famílias e redes de apoio. Nem todos conseguiram e por isso seguem na vila. “A gente não queria ir para o condomínio da Baleia, porque era muito longe do nosso trabalho. Eu, por exemplo, trabalho em Ilhabela. Se eu for pra Baleia Verde, eu vou ter que sair do meu emprego porque é muito longe. E como que eu vou fazer pra poder pagar minhas contas, trazer o alimento lá dentro de casa, pagar água, luz, condomínio? Se a gente não tiver emprego e não pagar o condomínio, a gente termina perdendo nossa casa”, explica a atingida.

Segundo a atingida, a ajuda do MAB foi muito importante para que ela conseguisse dialogar e conquistar o direito à sua casa em Maresias, o que vai permitir que ela permaneça no seu emprego. O pesquisador da Fiocruz, Paulo Amarante, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental, afirma que respeitar os vínculos afetivos e culturais e ouvir as pessoas atingidas no processo de reparação sobre sua vontade é fundamental para restaurar as condições de vida e de bem estar das populações. Segundo ele, para além de contabilizar os diagnósticos relacionados aos problemas sociais causados por grandes empreendimentos, é preciso se criar políticas públicas que pensem a saúde não como tratamento de doença, mas como qualidade, defesa e promoção da vida.

“Falta foco na comunidade e no território. Você vê o sofrimento das pessoas, numa situação de crise, de perda de vínculo, de perda de condições materiais, perda de referências. As pessoas ficam, claro, desnorteadas, sem pé, sem chão, sem teto, sem céu, etc. Então, não adianta querer “patologizar” tudo, tratar apenas como uma doença. As pessoas estão sem condições materiais de ter uma vida digna, sem água potável, sem sua casa, perderam vínculos afetivos, culturais, sociais. É preciso resolver a raiz do problema. Então, o trabalho de um profissional de saúde mental – essa é a minha linha na Fiocruz – é envolver o sujeito no protagonismo da criação de soluções”, avalia. O pesquisador reforça que, por isso, a participação é um fator essencial para garantir justiça para os atingidos.

“Não adianta dopar as pessoas com remédios. Aquelas pessoas tiveram suas condições de vida precarizadas e elas precisam de reparação. Elas precisam dizer o que elas querem, o que elas precisam. Você tem que considerar o atingido como um sujeito, que tem um desejo, que tem uma expectativa de vida e você precisa envolver esse sujeito no projeto de transformação daquela realidade”, enfatiza o pesquisador. Segundo Artur, a experiência de São Sebastião mostra que as vilas de passagem são, na verdade, um anti-modelo que não pode ser replicado na reparação de outras tragédias climáticas do país.