Por Cafira Zoé e Camila Mota

Eros, Exu, Pã, Semele, Dionísio, encruzilhada, desejo, mangue, mistura, sexo, sinapse, simbiose, confluência, gargalhada, ligação, legato, Zé é uma nota fantástica tocada enquanto outra começa, um acorde sem começo nem fim. Zé também é silêncio, cio sagrado de teatro. Contínua idade das eras geológicas, Zé é continuidade, desde o início é o mesmo sopro de vida, Zé é o avesso, não acaba, multiplica! É Antonin Artaud em mil estilhaços, é o próprio tempo, fora do tempo, é Cacilda Becker, Oswald de Andrade, Surubim, Zuria, Sandy Celeste, é sua avó andando a cavalo de pé e plantando bananeira, é Martinez Corrêa, são os povos de teatro, é a felicidade guerreira, Anhangabaú! É o delta de um grande rio para onde correm todas as águas e de onde partem afluentes novos, é o Rio Bixiga, é a copa da Cesalpina com as raízes fincadas no chão de terra do Teat(r)o Oficina segurando o céu no Bixiga, junto a todos os povos que seguram o céu neste país, que antes de ser país era árvore! Zé é oficina de florestas, João Gilberto, reviravolta, Zé é o um que se parte e se dá em muitas partes, sem volta.

Neste dia 16 de agosto do ano de 2023 o Teat(r)o Oficina, essa matéria viva de ferro, cimento, terra e vidro, completa 62 anos na rua Jaceguai, 520, no Bixiga, em São Paulo. Jaceguai também quer dizer come cabeça. Exu é a boca que tudo come. Neste endereço, há 62 anos, comemos muitas culturas e damos de comer muita vida com o que sabemos fazer de melhor: teatro. A trajetória arquitetônica desse edifício é indissociável da linguagem de uma companhia que há seis décadas vê seu corpo permanente e instável se regenerar e se renovar dando continuidade às muitas línguas desse teatro que é patrimônio material e imaterial brasileiro.

Esse aniversário de 62 anos, comemorado em 16 de agosto, é o aniversário de um processo de materialização de linguagem teatral em arquiteturas – sempre indissociáveis da arte praticada no espaço.

A companhia Teatro Oficina nasce amadora em outubro de 1958. Depois de quase três anos de uma existência de muita intensidade, essa linguagem nascente, na necessidade de sua profissionalização, esculpe seu primeiro espaço cênico – o Teatro Oficina desenhado por Joaquim Guedes, com o gesto iniciático de Cacilda Becker estourando a champagne na pedra fundamental do que viria a ser o espaço cênico em formato sanduíche, cercado por duas plateias.

Esse primeiro ser-espaço foi incendiado em 1966. O fogo pariu uma nova arquitetura, desenhada por Flávio Império, inaugurada com O Rei da Vela em 1967. Os arquitetos tiveram sempre a direção de um repertório para criar, com a companhia, seus desenhos.

O terceiro Teat(r)o Oficina, este que conhecemos agora, projeto de Lina Bardi e Edson Elito, também foi parido, esculpido, com a direção de um repertório a ser praticado ali: Bacantes, de Eurípedes; Mistérios Gozosos e O Homem e o Cavalo, de Oswald de Andrade; Os Sertões, de Euclides da Cunha; Acordes, de Bertolt Brecht.

Não existe Teat(r)o Oficina (espaço) sem o trabalho da companhia, os espetáculos dão sentido à arquitetura, que é criada e inspirada pelos espetáculos. É preciso compreender que a preservação desse patrimônio material (edifício tombado) passa necessariamente pela preservação desse patrimônio imaterial (a linguagem, isto é, a companhia).

O mais precioso legado de José Celso Martinez Corrêa é coletivo e se chama Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Durante seis décadas se inventou, falou, lutou, criou, imaginou, desejou, forjou Teat(r)o Oficina de muitos povos, de muitas mãos e corações, agora, mais do que nunca, essas palavras que contêm tanto axé, tanta magia, tanto teatro, precisam ser ditas, desejadas, refundadas, protegidas: Teat(r)o Oficina! Que é movimento, território, ecossistema, mangue, coletivo, bando, matilha, mistura, companhia, sem medo.

Na força desse Exu das artes cênicas, do senhor da comunicação, aquele que liga, celebramos a multiplicidade de povos humanos que forjaram esse teatro no número 520 da Jaceguai e os que continuam forjando aqui e agora. Celebramos todas as presenças, as passagens, as travessias, as trocas e atravessamentos, celebramos as permanências. Teat(r)o Oficina tem muitas caras, muitos nomes, muitas subjetividades, muitos pensamentos, tem muita língua e linguagem para preservar, expandir, continuar, na f(r)icção com o tempo.

Somos um povo em luta pela preservação de uma terra, um território de teatro, de cultivo de pensamento, de invenção de mundos. Se a memória é uma ilha de edição, já sabemos que teremos um trabalhão neste fino exercício de preservação e continuidade. A herança, legado de Zé, está estilhaçada em mil pedaços, espalhada e vai constituir um grande corpo sem órgãos. Além da herança material, como peças escritas, cadernos, desenhos, esboços… existe a herança imaterial, que são os fundamentos dessa linguagem, desse terreyro de teatro, sempre em transformação ao longo do tempo, e que estão espalhados nos corpos-alma de co-criadores dessa língua chamada Teat(r)o Oficina, e que será praticada nas encenações por vir, com um desafio enorme e fascinante de inventar a contracenação entre os trabalhos, as muitas experimentações estéticas criadas a partir de diferentes direções, que são a fertilidade desse movimento que agora se aproxima dos inícios da companhia em 1958, com as pluri-direções que foram dar nessa uzyna de criação.

Desde a tragédia, temos nos emocionado muito com a presença do público a cada noite, parindo a continuidade deste trabalho. O repertório dessa exato momento na companhia tem trabalhos, peças como mutação de apoteose, dirigida por Camila Mota, que se prepara para circular pelo Brasil; Rasga Coração, dirigida por Roderick Himeros e Felipe Botelho, em cartaz; O Bailado do deus morto, dirigida por Marcelo Drummond, também em cartaz; Pretobrás, e daí?, dirigida por Mayara, que faz novas apresentações em setembro; preparação do espetáculo A queda do céu, com leituras abertas; Máquina do Desejo, filme de Joaquim Castro e Lucas Weglinski realizado a partir do acervo audiovisual, nos cinemas… e muito mais, a mover.

O público, olimpo de dionísios, chão do nosso terreyro, tem sido o motor de nossa energia para a imensidão do trabalho por vir:

Encenações e criação de um repertório; organização e restauro de acervos de objetos, figurinos, documentos; organização e manutenção do acervo audiovisual e a consequente criação de novas obras audiovisuais para a circulação desse acervo e memória; trabalho intenso de produção e busca de financiamento para todas essas ações e, sobretudo, para a companhia, esse corpo artístico formado por dezenas de pessoas, de diferentes gerações, numa multiplicidade de existências, modos de vida, subjetividades, que desejam praticar essa linguagem em contracenação com o tempo presente, que apresenta inúmeros desafios para uma existência coletiva, na mesma medida em que anseia por ela.

Um projeto primoroso de reforma do edifício foi criado pela Gema Arquitetura + Edson Elito com a intensa colaboração da companhia, num processo de meses de trocas entre artistas desse espaço e artistas da arquitetura. Novamente um repertório dava as direções para as transformações necessárias ao teatro. Esse trabalho teve início com um edital promovido pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, que financiou a elaboração do projeto de restauro e reforma. Nesse dia 16 de agosto, aniversário desse espaço, desejamos, invocamos, que a segunda parte desse projeto, a execução da obra, seja também financiada pela Secretaria e tenha início em 2024.

Desejamos que todas as pessoas que recebam essas palavras agora misturem-se a nós! Sejam parte dessa força que deseja essa continuidade, nessas inúmeras ações e na criação do tão desejado e necessário Parque do Rio Bixiga, ao lado de muitos coletivos, movimentos, forças aliadas, ligadas na urgência de proteção e cuidados coletivos com a vida da terra e na terra. A preservação deste último chão de terra livre do centro da cidade de São Paulo, com o rio Bixiga de água potável correndo a 4m do chão no epicentro desse território, é questão de teatro, de saúde pública, de emergência climática, de respiros urbanos, de invenção de modos de vida que reexistem: ou simbiose, ou nada.

Viva os 62 anos desse edifício-terreyro-território que nos povoa e é povoado por essa companhia. Nada mais sobre nós, sem nós.

Ligar é passar adiante.

Honrando os mais velhos e os mais novos, os que vieram primeiro, e os que vêm lá na frente.

Viva esse sambaqui que Zé tão magistralmente intuiu coletivo, multidão, catarse, co-moção e agora também floresta. Teatro se planta, se inventa, se deseja, todo dia.

nesta terra
desta terra
para esta terra
e já é tempo

Oswald de Andrade.