Como hippies mineiros revolucionários, um cantor consagrado e músicos desconhecidos até então desafiaram a ditadura e tornaram-se imortais da música popular brasileira

Por Ben Hur Nogueira

“Neste clube, a gente sozinha se vê, pela última vez
À espera do dia, naquela calçada
Fugindo pra outro lugar”

Milton Nascimento “Clube da Esquina”, 1970

A música brasileira é uma variável esporádica. Uma daquelas variáveis cujas resultantes surpreendem através de suas fases prolíficas que, mais tarde, se tornam cultuadas em um saudosismo que provê certamente um deleite ao seu entusiasta.

Tivemos, por exemplo, preteritamente, por volta dos anos 1930 e 1940, cantores brasileiros estabelecendo si próprios em transmissões de rádio por todo país, onde tínhamos reis e rainhas de rádios e cantores cujas canções competiam entre si para se tornarem posteriormente marchas de carnaval. Tivemos neste tal período cantores como Vassourinha, Ataulfo Alves, Noel Rosa, Carmem Miranda, Angela Maria, Ismael Silva, entre outros. Foi uma época marcada por canções históricas e que, atualmente, ainda fornecem para seu telespectador um deleite saudosista. Nesta época, também houve embates históricos, como Noel Rosa contra Wilson Rodrigues, cada um retrucando através de letras geniais os sentimentos de zombaria e gozação que cada um destes sentia um pelo outro. Noel, por exemplo, ridicularizou a comunidade onde Wilson Rodrigues passou parte de sua vida e maximizou todo seu amor pela Vila Isabel dando origem a uma de suas canções mais conhecidas: “Feitiço da Vila”.

Houve também, no final dos anos 1950, cantores brasileiros livremente influenciados pelo jazz norte-americano que, através de arranjos mesclados peremptoriamente de instrumentos africanos e pelo folclore cotidiano nacional, foram capazes de imortalizarem-se por meio de álbuns cujo desejo jovial, sobretudo latino-americano, era capaz de transmitir tanto intelectualidade quanto um sentimento humanizável. Nesta época, tivemos cantores como Jonny Alf, João Gilberto, Vinicius de Moraes, Luiz Bonfá, entre outros que quiçá foram os primeiros depois de Carmem Miranda que “brasiliaram” a cultura nacional, sendo estes posteriormente lendas imortais da cultura nacional, cujas canções foram tocadas em filmes ao redor do mundo. Foi um dos maiores movimentos culturais latino-americanos de todos os tempos, quiçá um dos mais citados.

Houve outros cultuados depois destes. A Jovem Guarda; o brega; a popularização do sertanejo raiz; a redenção do samba de roda, cujos cantores se mobilizaram e ganharam atenção nacional, como Cartola, Candeia e Noite Ilustrada; e até mesmo derivados da beatlemania. Mas houve um cujo sucesso o tempo jamais será capaz de apagar, um movimento formado acima de tudo por jovens e revolucionários habitantes de um país latino-americano tomado por militares torturadores e assassinos. Este grupo era formado por músicos até então desconhecidos pela mídia mineira e nacional: um músico mineiro que havia ficado em segundo lugar no 2º Festival Nacional da Canção, de 1967, pela canção “Travessia” e por instrumentistas nacionais que receberiam o reconhecimento posteriormente por esta época saudosista da música mineira como um todo. Não categorizo O Clube da Esquina apenas por seu álbum homônimo de 1972, mas como o maior movimento da música popular brasileira pós-tropicália e como o maior movimento da música mineira que ajudou a solidificar a imagem de Minas Gerais fora do eixo Rio-São Paulo.

Falar do Clube da Esquina é falar de Minas Gerais. Ambos seriam inverossímeis sem o outro. Falar do Clube da Esquina é se referir ao povo mineiro e sobretudo à resistência cultural mineira à ditadura militar brasileira. Clube da Esquina foi um movimento augusto cuja finalidade concernia acima de tudo a estabelecer a visão do jovem brasileiro que não se categorizava a meros estigmas ideológicos, de um um povo que raramente é citado fora do já dito eixo, de um povo jovial que jamais se imaginava envelhecer.

Milton Nascimento havia acabado de se consolidar no cenário cultural brasileiro. Canções como “Travessia” e “Morro Velho” desestigmatizaram um paradoxo da literatura-musical, onde temos Milton livremente se referindo e sobretudo parafraseando ambas canções com referências literárias, sendo o título da primeira uma breve referência da última frase dita por Guimarães Rosa em seu magnum opus Grande Sertão: Veredas e seu eventual enredo uma referência verbalizada sobre um amor perdido e as consequências ao redor de uma travessia introspectiva.

No final dos anos 1960 e no ínicio dos anos 1970, a amizade de Milton com os irmãos Borges havia se solidificado já que, por um tempo considerável, habitaram no mesmo edifício, além de compartilharem paixões sobre cinema, cultura e música. Nesta época de prolificação musical, Milton ainda se enturmou com caras geniais que, até este dito momento, eram desconhecidos, como Robertinho Silva, que trabalhava na banda Som Imaginário; Naná Vasconcelos, que se tornaria, no futuro, o maior percussionista brasileiro de todos os tempos devido seus arranjos baseados em devaneios imediatos pessoais e em arranjos africanos; Tavito, que também trabalhou no Som imaginário; Wagner Tiso; o então calouro Beto Guedes; e seu parceiro musical que se tornaria seu maior aliado durante toda sua carreira: Fernando Brant, que, através de letras que compunham juntos, cujas melodias eram tão inovadoras quanto os versos sublimes e organizados artisticamente, tínham indubitavelmente não apenas um grupo musical se fundando, mas também se mobilizando culturalmente.

O álbum se inicia com a canção “Tudo que você podia ser” cuja composição era de Márcio e Lô Borges e a voz pertence a Bituca. A canção tem a participação de quase todos os integrantes do Clube da Esquina. Tínhamos um enredo completo por suas dubiedades. Uma ode à vanguarda jovial anti-militar e, consequentemente, uma ode às vivências e experiências pessoais de cada membro do próprio clube. No verso “Não fala mais na bota e no anel de Zapata” (referenciando o líder heróico da Revolução Mexicana), fica-se nítido que o silêncio e o desejo por uma resistência contra a repressão são palco daquela época.

A segunda faixa é certamente uma marca registrada de Bituca em sua carreira. Uma melodia presente em várias canções, inclusive no álbum Clube da Esquina 2, na canção “Que bom amigo”. “Cais” é uma travessia lúdica interpessoal de um personagem (aparentemente Bituca) cujo diálogo concerne o desejo intrínseco de repelir a solidão e se aproximar da felicidade pessoal. A terceira, “O trem azul” é uma canção cuja proposta oferece uma possibilidade ao seu escutador de sentir uma toada cuja resposta está em cada um, literalmente no desejo de embarcar num trem azul coberto por um sol que coça a pele positivamente.

“Saídas e Bandeiras n°1” é uma canção-retórica, onde sua sinopse fornece uma pergunta que dá origem a uma outra pergunta e assim por diante até que, enfim, temos uma manifestação de dor dos cantores que cantam simultânea e ininterruptamente. Nos seguintes versos: “O que era sonho virou terra” mostra como algo certamente palpável ou intrinsecamente possível torna-se algo pouco provável devido ao cenário da ditadura militar.

“Nuvem cigana”, assim como “Tudo que você podia ser”, é uma canção cujo cenário particular é exposto através de perguntas e um oferecimento a uma oportunidade caso o seu ouvinte se recuse a se permitir viver sem medo.

“Cravo e canela”, diferentemente das canções do álbum, torna-se um exemplo inequivocamente baseado em toadas populares e sobretudo na literatura brasileira com o livro “Gabriela cravo e canela”, onde 2 cantores justapostos um ao outro criam um jogo de palavras que classificam uma mulher cujo charme é influenciado pela obra de Amado. Assim se encerra o lado A do disco.

O lado B é certamente o lado mais experimental do álbum. A visão adultícia mescla com a proposital imaturidade jovial, onde sentimentos humanos quiçá como medo, tristeza, ansiedade dentre outros são ofertados logo de cara.

Na primeira faixa do lado B “Os cruzes”, temos ao mesmo tempo uma coragem absurda do Clube da Esquina como um todo ao introduzir um bolero não-brasileiro de Carmelo Larrea lançado originalmente em 1952. Em seguida, temos umas das canções mais icônicas do álbum: “O girassol da cor do seu vestido”, onde temos uma influência notável dos Beatles (principalmente em sua fase mais madura) e uma letra sobre seu personagem principal tornar-se emocionalmente instável. De uma estrofe para outra, a música passa a transmitir um sentimento humano nonsense que vai se transformando gradualmente.

A faixa “San Vicente” é, assim como “Lília”, uma canção onde Milton traz seu próprio “eu” como sujeito e seu passado como um cenário não apenas saudosista, mas como algo teluricamente sensível através de memórias sobre sua terra.

“Estrelas” é a penúltima canção da faixa B e a canção mais curta do álbum. Temos um coro que a acompanha, formada inclusive por nomes como Gonzaguinha e Milton, onde temos quiçá algo autoexplicativo, certamente uma noite que se aproxima do seu trovador.

A próxima canção é “Clube da esquina n° 2”, e tem uma possibilidade erudita que, diferentemente de “Cais”, onde temos um monólogo e logo em seguida uma melodia, temos neste um lado mais maduro dos próprios membros do Clube da Esquina, onde a voz de Milton acompanha os arranjos de Eumir Deodato, a bateria de Robertinho Silva, o contra-baixo de Luis Alves, a guitarra de Nelson Angelo e Lô Borges, a regência de Paulo Moura e outrossim, a voz e violão que pertencem a Bituca. Nesta faixa, tudo é muito sublime, nada precisa ser dito. Não temos uma ação sobreposta a uma ação e nem personagens que compõem o corpo da canção em si. Apenas uma melodia que transmite algo deleitoso, imprevisível e erudito. Tudo é orquestrado de maneira sensível. É um exemplo vívido de um experimentalismo erudito que maximiza o Clube da Esquina como um todo.

“Clube da Esquina n° 2” encerra o lado B do Clube da Esquina e logo temos uma demonstração de afeto e de um sentimento popular de uma toada mineira que utiliza guitarra ao invés de um mero violão no começo do lado C. “Paisagem da janela” é uma das canções mais lembradas do álbum e busca trazer paralelos entre as belezas de Minas Gerais como um todo em meio à morbidade e à sortidade e como um espírito jovial é tratado como algo certamente sacro em meio a tanta beleza provida.

“Me deixa em paz” é, para mim, a canção mais superestimada do álbum como um todo. Temos uma história reta e franca sobre um relacionamento abusivo onde as estrofes fortalecem o quão prejudicial a presença de um indivíduo é para uma relação. Temos, não obstante, uma mulher (Alaíde Costa) contracenando com um homem (Bituca). Não se sabe quem é o ser errôneo da relação, já que ambos compartilham as mesmas estrofes, mas podemos ter um certo entendimento sobre a conjectura que a canção oferece: é mais um espectro sobre o mal que um relacionamento abusivo pode prover do que quem é realmente o ser errôneo da relação.

Logo em seguida temos a faixa “Os povos” que, assim como na prévia “San Vicente”, temos uma carta de amor aberta do próprio Milton sobre seu passado, onde ele estabelece e simultaneamente oferece uma transmissão sensível sobre sua terra. Mas, diferente de “San Vicente”, temos tanto um arranjo quanto uma melodia melancólica, onde, ao mesmo tempo, a beleza e a tristeza se alternam como se fosse decerto uma sina passar por experiências introspectivas pessoais e lidar com a melancolia como um processo de adaptação. A canção é reminescente da canção de Arthur Verocai “Na boca do sol”, onde temos ambos protagonistas lidando com o amor e a tristeza, o carinho e a nostalgia, a melancolia e a compreensão adulta de sua pacata cidade de origem.

“Saídas e bandeira n°2” é a continuação de “Saídas e bandeira n°1” que é tocada no começo do álbum. Temos estrofes mudadas, mas a melodia permanece. A canção, assim como sua predecessora, fornece um estado de ponderação ao ouvinte.

“Um gosto de sol” é uma ode à versão lírica e íntima de Bituca como um trovador. Nela temos versos randômicos que trazem reminiscências e eventualmente temos, por conseguinte, como uma ode augusta, a melodia de “Cais” mais uma vez aparecendo contracenando nos minutos finais da canção como se fosse uma espécie de abraço que Milton tem com o passado e com a terra de Minas Gerais.

“Pelo amor de Deus”, canção posterior a “Um gosto de sol”, expõe medos oriundos de seu eu mais pessimista.

Em seguida temos “Lília”, uma ode ao passado de Milton, mas não um passado que favorece a sua versão como trovador. Aqui temos um propósito mais compreensível para a audiência: a mãe adotiva de Milton como real protagonista. O próprio Bituca relatou que não conseguia meticulosamente ponderar sobre quais letras poderiam categorizar tal canção e como ela deveria ser classificada.

“Trem de doido” é um outro exemplo de como os membros do Clube eram inconformados com a injustiça que marcava o Brasil durante aquele período. Aqui fica nítido que se referem a um meio de transporte cujos seus embargantes são levados para um lugar de tortura, “um hotel além do céu”. A canção se refere de maneira implícita às colônias de Barbacena, onde homossexuais, pretos alforriados, pessoas com distúrbios mentais e até mesmo crianças eram expostas a meios brutais de tortura de maneira desumana.

“Nada será como antes” é uma faixa que assim como “Tudo que você podia ser” é crítica ao período militar nacional. Não obstante, temos uma postura mais agressiva e mais dubiosa. A canção reflete, através de suas estrofes, a imprevisibilidade que sentiam durante a ditadura. A canção pode ser, juntamente de “Trem de doido”, um exemplo implícito sobre críticas ferrenhas que passavam na cabeça de cada membro do Clube. Versos como “Que notícias me dão dos amigos, que notícias me dão de você” deixam claro o quão imprevisível o momento era e o quão ideologicamente instável o cenário político havia se tornado.

“Ao que vai nascer” finaliza o álbum. Tal faixa remete, acima de tudo, às expectativas de encontrar alguém que se absteve por um tempo indeterminado. Temos duas fases nesta canção: uma melancólica e a outra positivamente otimista. Uma melancolia que se torna em uma expectativa e logo em uma vitória sobre possíveis retornos que ocorreriam em uma breve anistia política, uma vitória sobre a malícia militar, sobre a tortura, sobre os militares.

Reminiscências de um clube jovial onde lá se fizeram e lá se viam

Dois anos anteriores ao álbum debutante do clube da esquina, Milton havia incluído em seu álbum “Milton” uma canção cujo enredo era o próprio Clube, um Clube onde ele e seus manos se viam quase todos os dias. A canção em si não é apenas uma ode ao Clube, mas também à amizade, às virtudes vigorosas da vida, à sensibilidade, ao afeto de irmão para irmão. É uma canção sobre tudo que o Clube se tornaria no seu álbum homônimo lançado em 1972. “Neste clube a gente se vê pela última vez”, “Um grande país eu espero”, versos assim logo esclarecem o que era o clube: um subterfúgio endógeno de jovens cuja juventude era classificada como algo perdido, incoerente, inverossímil. O clube veio para, acima de tudo, fortalecer a ideia de que o ser jovem também poderia ser algo antológico e sobretudo contra-mão da peripécia maliciosa crível que cercava-os no passado. O álbum foi também na contramão de uma vanguarda da música brasileira que se priorizou apenas comercialmente e não culturalmente naquele tempo. O álbum foi tão revolucionário que a música popular oriunda de Minas Gerais teve sua fase pré-Clube da esquina no auge dos anos de chumbo, o recesso e suas consequências onde cantores como Tavito (que participava da banda Som Imaginário e trabalhou em algumas canções do álbum) lançaram versões remasterizadas do álbum original e canções como “Rua Ramalhete”, em que ele trazia um cenário mineiro onde a cultura prevalecia contra a dita opressão e, sobretudo, saudava o Clube da Esquina como um todo. E tivemos a fase pós-Clube onde cantores oriundos de terras mineiras traziam tópicos populares e folclóricos de crença popular como uma forma de reverência e referência para o Clube da Esquina. Em 1978, os membros do Clube original resolveram trazer canções novas compostas por eles mesmos. Tivemos clássicos da MPB moderna como “Maria, Maria”, “Credo” e “O que foi feito de Vera”.

O Clube da esquina é certamente uma revolução contra-cultural que ocorreu em Minas Gerais e seus resultados podem ser observados até hoje, com diversas referências culturais cultuando esta obra-prima, o magnum opus da cultura mineira. Uma vanguarda antológica, um Clube na Esquina que lá iam e ficavam, mas o tempo, mesmo inabalável, jamais tirará deste o desejo jovial por um mundo melhor. Um paradoxo, um clube em uma certa esquina pacata mineira, que assim como outras buscava um país melhor.