Às vésperas de ser denunciado pelos casos de censura, ataques a jornalista e a veículos de comunicação em audiência ordinária da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, o governo Bolsonaro publica cartilha sobre os direitos humanos de jornalistas e comunicadores. Seria irônico, se não fosse trágico. Na verdade, é mais que trágico, é um desrespeito à sociedade e particularmente aos jornalistas.

A cartilha, publicada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que tem como titular Damares Alves, cumpre recomendação da própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos, publicada em abril de 2016, como resultado do processo que correu por ocasião do assassinato do jornalista Aristeu Guida da Silva, em 1995. Ou seja, desde abril de 2016 o Estado brasileiro deveria ter publicado a cartilha, mas não o fez.

Por que agora?

Agora, porque o governo precisa dar alguma resposta, ainda que vazia e mentirosa, que reduza os danos da sua imagem pelos ataques que ele faz de forma sistemática a jornalistas e veículos de comunicação.

Agora, porque o relatório divulgado pela Fenaj — que compilou 121 agressões do presidente contra jornalistas em 2019 — deu ordem de grandeza aos casos de violência contra comunicadores praticados pelo presidente.

E, agora, porque o Brasil será denunciado diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, na próxima sexta-feira, 6, pelas violações à liberdade de expressão que se tornaram política de Estado no Brasil desde a posse de Jair Bolsonaro.

A cartilha, como o próprio Ministério divulgou em release, foi elaborada pela Assessoria Especial de Assuntos Internacionais do Ministério. Não é de se estranhar. Por se tratar de audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o órgão do Estado brasileiro que é notificado é exatamente o responsável pelo tema. Damares e sua equipe, provavelmente, foram notificados no último dia de janeiro, ou no início de fevereiro, de que a audiência ocorreria.

E com que objetivo?

O objetivo da cartilha é publicar algo que “limpe a barra” do governo perante a CIDH-OEA na audiência. Além disso, a ideia é pautar a mídia hegemônica para reduzir os dados e mostrar que sim, o governo está preocupado com a liberdade de imprensa – aliás como noticiou o Jornal Nacional desta terça-feira, 03 de março. Não aprendem… Comeram a isca. Aliás, com que alívio o Bonner abriu a matéria, parece até que em nome da Globo ele queria dizer, obrigado presidente, por nos ajudar a dar uma notícia positiva sobre o seu governo.

Ou seja, enquanto o presidente manda bananas aos jornalistas e ataca a imprensa; enquanto mostra seu machismo ao escolher a dedo mulheres que atuam na profissão – como Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães – para serem alvo do ódio e de achincalhe público, que levam até a ameaças de morte; e enquanto ele maneja recursos publicitários do governo para abonar a mídia bolsonarista (Record, SBT e amigos), ou para estancar recursos de veículos mais críticos – como a Folha e a própria Globo, um ministério publica uma cartilha e parece que está tudo bem. Desculpas aceitas. Só que não.

Nem uma linha do que está naquela cartilha (que compila várias passagens de convenções e declarações do sistema internacional de direitos humanos sobre liberdade de expressão, defesa dos direitos humanos de jornalistas e comunicadores e lista recomendações e padrões de conduta para que estados democráticos desenvolvam um ambiente de pluralidade, diversidade e proteção da imprensa livre) é considerada pelo presidente e seus apoiadores. O conteúdo da cartilha é letra morta.

Além disso, as citações de relatórios que trazem dados sobre violência contra jornalistas e comunicadores no Brasil está desatualizada (a mais recente é de 2019 e na cartilha os dados são de 2014).

Não há qualquer referência à explosão dos casos de censura e de ataques contra jornalistas e veículos de comunicação promovidas pelo atual presidente da República – que assina em letras garrafais o expediente da cartilha. Tampouco fala dos inúmeros casos de processos judiciais movidos pelo presidente, por seus filhos e ministros para tentar calar jornalistas e jornais. Muito menos aborda a total ausência de compromisso deste governo com a informação factualmente correta, com o respeito à imprensa livre, com a transparência das ações do governo para garantir o pleno direito à informação da sociedade.

A cartilha do governo Bolsonaro é uma cortina de fumaça.

Mas como já disse um pensador odiado pelo Bolsonarismo, a prática é o critério da verdade. Não basta publicar numa cartilha que é preciso “realizar discursos públicos que contribuam para prevenir a violência contra jornalistas e outros comunicadores e comunicadoras”, se a prática do presidente e do governo é radicalmente oposta, é a de insuflar a violência.

Basta ler uma linha do que está na cartilha, que se percebe o abismo entre o que está escrito e o que infelizmente estamos vivendo no Brasil.

Escrevo este artigo já na sala de embarque, indo para Porto Príncipe no Haiti, onde irei com muito orgulho e responsabilidade denunciar Bolsonaro e seu governo por reinstalar um Estado censor, por violar os dispositivos da Constituição Federal que garantem o direito à liberdade de expressão, por atacar de forma covarde jornalistas, em particular colegas mulheres jornalistas, por fazer o Brasil viver o sufocamento da expressão cultural e artística, com a censura a espetáculos teatrais, exposições, filmes, e até comerciais de empresas públicas.

Vou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, ao lado de outros colegas que juntos representaremos as entidades que submeteram o pedido desta audiência à CIDH-OEA1, para dizer que o Brasil não é mais uma democracia, porque sem liberdade de expressão não há democracia possível.

E não tem cartilha que mude este terrível cenário que o Brasil vive. É só a luta, a denúncia, a resistência, e a coragem de continuar divulgando e noticiando o que for relevante para o interesse público que pode alterar essa situação.

 

1 – As entidades autoras do pedido de audiência à CIDH-OES são:

ARTIGO 19 – Brasil
Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo
Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço)
Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL)
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee)
Central Única dos Trabalhadores (CUT)
Coalizão Direitos na Rede
Derechos Digitales
Federação Interestadual dos Trabalhadores e Pesquisadores em Serviços de Telecomunicações (Fitratelp)
Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)
Instituto Vladimir Herzog
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Repórteres Sem Fronteira
Movimento Artigo Quinto
Terra de Direitos

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