Por Marina Dias, Ana Lia Galvão e Martim Landgraf*

Ainda pouco debatida e conhecida, a pena de multa é uma sanção financeira aplicada a pessoas condenadas por determinados crimes, como tráfico de drogas e furto. Ela pode ser imposta sozinha ou, como acontece na maioria dos casos, junto a uma pena de prisão.

Os valores dessas multas são determinados pelo juiz no momento da sentença, de acordo com cálculos previstos na lei. Para uma pessoa condenada hoje por tráfico de drogas, por exemplo, independentemente da quantidade de substância apreendida, a sanção é de no mínimo R$ 22 mil.

Com a pena de multa, mesmo após deixar a prisão, a pessoa segue em dívida com o Estado. Enquanto o valor não é pago, a pena não é considerada cumprida e os direitos políticos permanecem suspensos, gerando um efeito em cascata sobre uma série de direitos básicos de cidadania.

Sem poder votar, o CPF fica irregular, o que impede a pessoa de ter conta bancária ou sequer ser titular de uma conta de energia elétrica que possa servir como comprovante de endereço. Sem esses documentos e com a anotação em sua ficha de antecedentes criminais, dificilmente irá conseguir um emprego no mercado de trabalho formal. Além disso, não é possível receber benefícios assistenciais do governo (como o Bolsa Família), tampouco se matricular em uma instituição de ensino superior. Tal situação cria um ciclo perverso de exclusão, dificultando ainda mais a retomada da vida após a passagem pelo cárcere.

O motivo da falta de conhecimento sobre essa multa é que até bem pouco tempo atrás ela não fazia parte do dia a dia da execução penal brasileira. O cenário começou a mudar em 2019, com a alteração legislativa promovida pelo chamado Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), de autoria do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, e pelas interpretações dos tribunais firmadas a partir de casos midiáticos, como o “Mensalão” e a “Lava-Jato”.

Apesar dessas mudanças serem impulsionadas por fatos relacionados a crimes de corrupção, o fato é que hoje a pena de multa afeta milhares de famílias pobres, negras e periféricas. Segundo dados publicados pela Agência Pública, em março deste ano, cerca de 208 mil execuções de pena de multa estavam em andamento no estado de São Paulo. O mesmo levantamento aponta que em janeiro de 2020 eram apenas seis processos.

As alterações na lei têm feito com o que o Ministério Público paulista busque a execução de todas as multas, não importando seu valor, nem o patrimônio das pessoas condenadas. O Judiciário do estado tem realizado penhoras de qualquer bem ou valor, mesmo que isso signifique a soma de tudo o que a pessoa possui e seja irrisório frente ao valor total devido. Há relatos de penhoras de motocicletas utilizadas como meio de trabalho, aparelhos de TV de familiares e até de carroças.

Ano passado, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) promoveu um mutirão de atendimento jurídico gratuito feito em parceria com algumas entidades para tentar extinguir a multa de pessoas que não têm condições de quitar a dívida. Entre julho e dezembro de 2022, foram assistidas 241 pessoas. Os dados levantados sobre o perfil dos atendidos mostram o quanto a pena de multa é um sistema legalizado de discriminação que impõe obstáculos, muitas vezes intransponíveis, no caminho da vida civil de pessoas que já passaram por uma condenação criminal. Ou seja, ela opera quase como uma pena de caráter perpétuo – algo vedado pelo artigo 5º da nossa Constituição.

Outros dados coletados nos atendimentos do IDDD mostram que 79,7% das pessoas assistidas se autodeclararam negras (pretas ou pardas); 71,4% relataram terem filhos e/ou outros dependentes; 72,2% disseram ganhar até R$ 1.200 mensais; quase 1/5 (18,7%) afirmaram estar em situação de rua; e 59,3% declararam estar desempregadas.

Como esses números evidenciam, a aplicação da pena de multa atinge majoritariamente a população que compõe o sistema prisional: a juventude negra, cuja imensa maioria é condenada por tráfico de drogas, o crime que mais leva pessoas à prisão no Brasil, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional.

A pena de multa é mais um mecanismo que aprofunda o racismo e a desigualdade social. É preciso que o Poder Judiciário passe a olhar o tema considerando o impacto na vida daqueles que passaram pelo cárcere e de seus familiares. Também é necessário que o Congresso Nacional e as assembleias legislativas nos estados passem a legislar para alterar mecanismos que lançam a população sobrevivente do sistema prisional a uma situação de subcidadania.

O tema precisa ocupar um espaço de destaque nos debates sobre justiça criminal no país. Por isso, recentemente o IDDD lançou uma campanha para dar visibilidade a essa discussão. Precisamos debater e pensar em estratégias que fujam do ideário punitivista dominante na sociedade brasileira, considerando como esse princípio tem servido a manter grupos perseguidos historicamente privados do acesso a direitos básicos.

Convidamos você a conhecer mais sobre o tema no site da campanha: www.iddd.org.br/pena-de-multa.

Se você também considera esse debate urgente, compartilhe nas suas redes e com seus contatos.

*Marina Dias é diretora-executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
Ana Lia Galvão é assessora de programas do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
Martim Landgraf é assistente de programas do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)