Após 10 anos da criação do Sistema Nacional, atuação dos estados é insuficiente para a prevenção e combate à tortura

Durante o mês de outubro, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) realizou inspeções em diferentes unidades de privação de liberdade no estado de São Paulo. Ao todo, no interior e na capital, foram 10 unidades inspecionadas pelo órgão, que contou com a participação de organizações de direitos humanos e coletivos de familiares de pessoas privadas de liberdade e sobreviventes do cárcere.

As inspeções são imprescindíveis para a garantia e efetivação de direitos fundamentais de pessoas em privação de liberdade, seja em estabelecimentos prisionais, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas ou em cumprimento de medidas socioeducativas; e têm o objetivo de verificar as condições de encarceramento, documentar as denúncias de maus tratos, tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes para que sejam devidamente investigadas e processadas pelas autoridades competentes.

Nesse sentido, o objetivo da criação de um Sistema Nacional é, como a própria legislação indica, o fortalecimento da prevenção e do combate à tortura, por meio de articulação e atuação cooperativa de vários integrantes. Foi por esse motivo que a legislação previu a criação de mecanismos estaduais, para além do Mecanismo Nacional, que pudessem atuar de forma conjunta dentro de seus respectivos estados e com o apoio de diferentes órgãos como Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público, entre outros, e da sociedade civil organizada.

No entanto, até hoje, apenas cinco mecanismos estaduais foram criados, os quais estão localizados no Acre, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rondônia. Apesar de representarem avanços importantes, ainda é um número muito abaixo do necessário, considerando a quantidade de locais de privação de liberdade e suas particularidades em um país com dimensões continentais como o Brasil. Não bastasse a insuficiência, são diversos os desafios para a continuidade das atividades de cada mecanismo e são graves os riscos de extinção desses órgãos, como no caso da Paraíba e de Pernambuco, em que os órgãos já não estão em funcionamento.

No estado de São Paulo, no qual há a maior população carcerária do país, apesar de ter avançado um projeto de lei que criava o mecanismo estadual, este não foi aprovado. O veto do então governador do estado, João Doria, em 2019, foi uma das primeiras medidas tomadas em sua gestão e tinha como justificativa a suposta inconstitucionalidade do projeto, além dos “gastos orçamentários” necessários para a sua implementação. Foi também no ano de 2019 que o Mecanismo Nacional sofreu forte ofensiva do governo federal com o decreto que exonerou seus peritos e peritas e tornou não remuneradas as atividades – situação revertida apenas em 2022, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, julgou inconstitucional, proferindo uma importante decisão que resguardou os direitos dos servidores e garantiu o funcionamento do órgão.

Os mecanismos Nacional e estaduais são símbolos do compromisso internacional assumido pelo Estado brasileiro ainda em 2007, com a ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da Organização das Nações Unidas (ONU). Também é competência destes órgãos fazer recomendações às autoridades públicas ou privadas, responsáveis pelas pessoas em locais de privação de liberdade, com vistas a garantir a observância dos direitos dessas pessoas.

Defender a existência e a atuação dos mecanismos de prevenção e combate à tortura, em âmbito nacional e estadual, bem como dos comitês também previstos pela lei brasileira é defender o direito de que nenhuma pessoa seja submetida à tortura ou maus tratos não somente nos espaços de privação de liberdade, mas especialmente nesses locais em que a presença do Estado tem se mostrado insuficiente para garantir a dignidade humana. É extremamente importante que os poderes Executivo e Legislativo atuem conjuntamente no interesse da prevenção e combate à tortura no país e que, nesse processo, garantam a ampla participação da sociedade civil, que tem contribuído para dar visibilidade e denunciar graves violações de direitos humanos.

Roberta Marina dos Santos, assessore de projetos no programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos

Vivian Peres da Silva, coordenadora de projetos do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)

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