Por Carlos Machado e Viviane Gonçalves Freitas*

As eleições de 2020 foram marcadas pela inovação quanto à distribuição do financiamento público considerando os critérios de gênero, estabelecidos desde 2018, e a autodeclaração racial, que remete à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Contudo, o momento em que essa deliberação ocorreu, às vésperas das disputas municipais, fez com que os partidos reagissem à mudança, não havendo, na verdade, um planejamento prévio.

Mesmo que as legendas tenham sido pegas de surpresa, a autonomia que têm na distribuição dos recursos é elevada a um nível que, dificilmente, tal alteração faria com que esses constrangimentos legais afetassem suas estratégias naquelas eleições. De forma geral, os partidos distribuíram corretamente os recursos públicos com relação a critérios de gênero, mas não o fizeram quanto a candidaturas negras, compostas por pessoas que se autodeclararam pretas ou pardas.

Nas eleições de 2022, podemos observar dois tipos de incentivos para os partidos políticos, com base no atual formato da legislação, um de curto e outro de longo prazo. De forma mais imediata, o número de candidaturas registradas por partidos ou federações indica a quantidade do recurso público que as legendas serão obrigadas a destinar a candidaturas negras. Isso pode levar a dois cenários. O primeiro: uma redução no número de candidaturas negras, para que os partidos não se sintam constrangidos a distribuir recursos públicos para determinado perfil de candidatura. Essa é uma dimensão que a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), confirmada pelo STF, possibilita.

No entanto, o registro de candidaturas para 2022 sinaliza que houve aumento de pleiteantes autodeclarados pretos em relação às eleições de 2018, no agregado de candidaturas, refutando, inicialmente, essa hipótese. Esse cenário também abre a possibilidade para que pessoas brancas se aproveitem da fluidez dos critérios de formação das identidades raciais no Brasil para se apresentar como pardas, permitindo um direcionamento de recursos para si.

Com relação ao incentivo de longo prazo, recentemente, o Congresso Nacional aprovou mudanças na legislação eleitoral, concedendo bônus na distribuição de recursos públicos para partidos apresentarem candidaturas femininas e/ou negras, visto que seus votos serão contados em dobro no cálculo para o financiamento e o horário de propaganda eleitoral. Tendo em vista os recursos de eleições futuras, há, portanto, um estímulo para inflar esse perfil de candidaturas.

Porém, essa distribuição pode ocorrer de forma muito distinta dentro dos partidos. Por exemplo, uma legenda pode optar por distribuir igualmente os recursos entre todas as candidaturas com mesmo perfil ou concentrar recursos em poucas candidaturas, nas quais entenda ser mais provável conseguir o sucesso eleitoral. É importante notar que, a partir das eleições de 2022, entra em cena um novo dispositivo de barreira, a obrigatoriedade de uma candidatura obter ao menos 20% do valor do quociente eleitoral (número de votos válidos dividido pelo número de cadeiras em disputa em cada distrito eleitoral – em se tratando de Brasil, o que corresponde a cada estado) para se eleger. Isso reforça a necessidade de concentrar recursos em poucas candidaturas para a obtenção de cadeiras.

No caso de candidaturas femininas, é importante atentar para a combinação dessa barreira com outro aspecto. Desde 2018, uma estratégia frequente para cumprir a cota de financiamento feminino tem sido a indicação de candidaturas de mulheres para cargos de vice-governadora, vice-prefeita ou suplente ao Senado. A alocação de recursos para candidaturas a esses cargos majoritários, desidratando candidaturas para cargos proporcionais (vereadora, deputada estadual/distrital ou deputada federal), pode reduzir o quantitativo de mulheres capazes de ultrapassar esse piso de 20% do quociente eleitoral.

Existem, assim, várias dimensões a serem observadas nas eleições de 2022 quanto aos desafios que candidaturas femininas precisarão superar com relação ao financiamento de suas campanhas. A legislação sobre o tema é um ganho efetivo em relação ao cenário anterior a 2018. Mas persistem brechas e possibilidades de interpretação sobre a norma que podem reduzir o impacto positivo desejado para as candidaturas femininas.

Cabe também salientar que a alteração na legislação eleitoral, ocorrida no início deste ano, anistiou as legendas que não cumpriram as obrigações de financiamento a candidaturas de mulheres no pleito anterior. Quantos outros dispositivos institucionais serão necessários ainda para que tenhamos, de fato, a equidade na representação política é outro ponto a se atentar.

*Carlos Machado é professor de Ciência Política no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol-UnB), onde coordena o Núcleo de Pesquisa Flora Tristán. É coautor do livro “Raça e eleições no Brasil” (Zouk, 2020). Pesquisa partidos políticos, sistemas eleitorais, raça, gênero e política.

*Viviane Gonçalves Freitas é professora no Departamento de Ciência Política da UFMG. Doutora em Ciência Política (UnB). Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG). Coordenadora e cofundadora do GT Mídia, Gênero e Raça (Compolítica).

Esse artigo é uma colaboração entre IPOL-UnB e Observatório Nacional da Mulher na Política da Câmara dos Deputados. Foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.

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