Assentamento Roseli Nunes (MT). Foto: Rosilene Miliotti – FASE

A Campanha Nacional em Defesa do Cerrado realiza desde segunda-feira (15), de forma virtual, a Audiência Temática sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade no âmbito do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado. O evento segue nesta terça (16), das 13hs às 16h30 (horário de Brasília).

O foco da audiência serão as denúncias sobre a contaminação – especialmente por agrotóxicos – de comunidades e seus territórios, e sobre o desmonte das políticas de segurança alimentar, de comercialização da produção camponesa e dos produtos da sociobiodiversidade. As denúncias apontam que estas violações provocam a desestruturação dos sistemas agrícolas tradicionais, aumentam a fome e ameaçam a saúde coletiva. Em razão do seu caráter sistêmico no tempo e no espaço, as contaminações e desmontes contribuem para o ecocídio do Cerrado e para a ameaça de genocídio cultural dos povos que dele dependem para manter seus modos de vida.

Os membros do júri ouvirão os depoimentos e testemunhos de representantes e assessores/as dos casos e de movimentos dos povos do Cerrado em que essas denúncias estejam mais em evidência. O júri também dialogará com as relatoras de acusação sobre a sistematização dessas denúncias, e com representantes do Sistema de Justiça Brasileiro sobre os desafios para efetivação dos direitos dos povos do Cerrado.

A audiência será transmitida ao vivo pelo canal do YouTube da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

No dia 29 de março, das 14 às 15hs (horário de Brasília) será transmitida, no mesmo canal da Campanha, uma manifestação pública do júri com as primeiras reações em relação a esta fase do processo instrutório, que constituirá um insumo para a audiência final.

Impacto sobre mulheres

No segundo dia de atividades, representantes da Articulação de Mulheres do Cerrado promoverão um ato político de entrega de um documento específico com denúncias de mulheres dos diversos povos do Cerrado. Raizeiras, quebradeiras de coco, geraizeiras, apanhadoras de flores, camponesas, agricultoras familiares, extrativistas, quilombolas, pescadoras, indígenas e toda a diversidade que se afirma como mulheres do Cerrado mostrarão como as violações apresentadas na audiência recaem de forma desproporcional sobre suas vidas e seus corpos em razão dos papéis social e historicamente atribuídos a elas nas famílias e comunidades.

O documento mostra, ainda, como as mulheres se organizam e se articulam para enfrentarem as violações e seus agentes, protagonizando a resistência a esse duplo crime de ecocídio-genocídio.

Foto: ISA/Divulgação

PL do Veneno

A Audiência Temática Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade acontece em momento estratégico da conjuntura nacional, em que o Executivo e o Legislativo federal se empenham em colocar mais veneno no prato de brasileiras e brasileiros. No dia 9 de fevereiro, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto de Lei 6.922/2002, que flexibiliza o uso de agrotóxicos no País. Conhecido como “PL do Veneno”, o projeto centraliza no Ministério da Agricultura – nas mãos da ruralista Tereza Cristina – a fiscalização e análise dos produtos para uso agropecuário, excluindo o Ministério do Meio Ambiente e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que atualmente participam desse processo.

O projeto também adota o registro temporário de novos produtos, que podem ser liberados para uso mesmo que outros órgãos reguladores, como a Anvisa, não tenham concluído a análise dos riscos causados pelo veneno.

“Só em 2021, 562 novos produtos foram liberados pelo presidente Jair Bolsonaro, o maior número registrado em 21 anos, segundo a série histórica feita pelo Ministério da Agricultura. A publicação no Diário Oficial da União foi realizada no findar de dezembro e os números já somam 1.552 produtos venenosos liberados só nos três anos de mandato do presidente, quase metade (43%) do total de 3.550 produtos comercializados no país, segundo o levantamento da Agência Pública e da Repórter Brasil”, informa reportagem publicada no Le Monde Diplomatique Brasil.

O PL do veneno segue para votação no Senado.

Os casos

Na Audiência Temática sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade serão apresentados seis casos. Conheça cada um deles:

Piauí: Ribeirinhos do Chupé e Indígenas Akroá-Gamella do Vão do Vico

Comunidade Tradicional do Território Chupé e Comunidade Indígena Akroá-Gamella da Terra Indígena Vão do Vico, no município de Santa Filomena, Piauí, lutam pela permanência e titulação de seus territórios enquanto sofrem com a expropriação ilegal e desmatamento de parte de seus territórios tradicionais nas chapadas por empreendimentos de monocultivo de soja de grileiros, também beneficiados por investimentos de fundos de pensão internacionais. As violações causam impactos ambientais com contaminação por agrotóxicos nas nascentes de água, contaminação do solo e das roças das comunidades por via aérea através do vento.

Povo Akroa-Gamella. Foto: Cristhyan Kaline Soares da Silva

Tocantins: Povos Indígenas Krahô-Takaywrá e Krahô Kanela

Povos Indígenas Krahô-Takaywrá e Krahô Kanela e comunidades assentadas da reforma agrária nos municípios de Formoso do Araguaia e Lagoa da Confusão, no Tocantins, resistem à apropriação ilegal das águas por meio de barragens, canais, bombas e desvio do leito do rio, à consequente seca, ao desmatamento e à contaminação por agrotóxicos na bacia dos rios Formoso e Javaés, afluentes do Araguaia, causadas pelos produtores do Projeto Rio Formoso de monocultivo irrigado de arroz, soja e outros, com apoio do estado e omissão do órgão fiscalizador. Enquanto sofrem a afetação nas águas, base da reprodução de seus modos de vida e sua saúde, os Krahô-Takaywrá lutam pela demarcação de seu território e os Krahô Kanela vivem em 7 mil hectares e lutam pela outra parte do território que está ainda em posse dos fazendeiros.

Mato Grosso do Sul: Povos Indígenas Guarani e Kaiowá e Kinikinau

Indígenas Guarani e Kaiowá e Kinikinau em Terras Indígenas e retomadas em diversos municípios do Mato Grosso do Sul lutam para seguir existindo como povos indígenas, enquanto enfrentam situações de desterritorialização, confinamento extremo, assassinatos, torturas, espancamentos, ataques com armas de fogo, agrotóxicos e insegurança alimentar extrema constituindo um processo de genocídio/etnocídio em curso, no marco de décadas de intensos conflitos com fazendeiros e grileiros do agronegócio exportador, com apoio do estado e de poderosos políticos.

Mato Grosso: Camponeses do Assentamento de Reforma Agrária Roseli Nunes

Camponeses do Assentamento de Reforma Agrária Roseli Nunes em Mirassol D’Oeste, no Mato Grosso, lutam para manter a força de sua produção e comercialização agroecológica em um contexto de destruição das políticas de reforma agrária e de incentivo à comercialização camponesa, enquanto enfrentam a ameaça de expropriação por projetos minerários de fosfato e ferro ligada aos interesses de políticos e do agronegócio do estado.

Maranhão: Comunidades Quilombolas de Cocalinho e Guerreiro

Comunidades Quilombolas de Cocalinho e Guerreiro, no município de Parnarama, Maranhão, lutam pela titulação do Território Quilombola, enquanto enfrentam conflito com grilagem, desmatamento, incêndios florestais e contaminação por agrotóxicos por empreendimentos de monocultivos de eucalipto de empresa fabricante de papel e celulose e por fazendas de soja que se expandem para a região.

Maranhão: Quebradeiras de Coco-Babaçu e agricultores familiares do Acampamento Viva Deus

Quebradeiras de Coco-Babaçu e agricultores familiares do Acampamento Viva Deus, nos municípios de Imperatriz e Cidelândia, Maranhão, lutam pela titulação de um Assentamento de Reforma Agrária e vivem em constantes conflitos, ataques, vigilância e ameaças de desapropriação por empreendimentos de monocultivos de eucalipto de empresa fabricante de papel e celulose.

Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real

Próxima audiência e veredito final

A Audiência Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade é a segunda audiência temática da fase instrutória do júri do Tribunal. A primeira foi a Audiência das Águas, realizada nos dias 30 de novembro e 1 de dezembro de 2021.

A terceira e última audiência temática será sobre Terra e Território, e será realizada junto com a audiência final deliberativa. As duas atividades acontecerão entre os dias 8 e 10 de julho de 2022, de forma híbrida – presencial e virtual.

O foco dessa audiência temática serão as denúncias sobre os processos de desmatamento e grilagem de imensas porções de terras públicas e a imposição de grandes projetos de “desenvolvimento”, ao mesmo tempo em que não avançam processos de titulação de terras indígenas e territórios quilombolas e tradicionais da região, como processos provocadores do racismo fundiário e ambiental para os povos, contribuindo, em razão de sua sistematicidade geográfica e temporal, para o ecocídio do Cerrado e ameaça de genocídio cultural dos povos do Cerrado.

Teremos os depoimentos e testemunhos de representantes e assessores/as de todos os casos, articulados com a fala de relatores/as de acusação sobre a sistematização dessas denúncias em escala de Cerrado.

No último dia da Audiência Final, após a escuta dos casos, relatores de acusação e expressões culturais, o júri lerá uma primeira manifestação pública que antecipe elementos do veredito final.

Para saber mais sobre as atividades, acesse a programação oficial do TPP.

Encontro Rio Formoso com Rio Javae (TO). Foto: CIMI

SOBRE O TPP

O Tribunal Permanente dos Povos é uma instância de tribunal de opinião que procura reconhecer, visibilizar e ampliar as vozes dos povos vítimas de violações de direitos. O Tribunal existe para suprir a ausência de uma jurisdição internacional competente que se pronuncie sobre os casos de violações contra os povos.

O tribunal conta com um júri multidisciplinar, escolhido a cada nova sessão e de acordo com os casos apresentados. Os membros do júri são reconhecidos por sua independência e pela experiência em relação aos temas analisados. São membros da academia, juristas, jornalistas, artistas, lideranças populares e religiosas, entre outros.

SESSÃO CERRADO

“É tempo de fazer acontecer a justiça que brota da terra!” Com esse lema, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado – uma articulação de 50 movimentos e organizações sociais – peticionou ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP) para a realização de uma Sessão Especial para julgar o crime de ecocídio contra o Cerrado, lançada em 10 de setembro do ano passado.

O crime é entendido como históricos e graves danos e a vasta destruição que resultaram da intensa expansão da fronteira agrícola sobre essa imensa região ecológica (cerca de 1⁄3 do território nacional) ao longo do último meio século. Esta ocupação predatória foi desenhada e dirigida pelo Estado brasileiro, em articulação com Estados estrangeiros e agentes privados nacionais e estrangeiros, com os quais compartilha a responsabilidade nesta acusação.

A Campanha propõe, na acusação, um aprofundamento da leitura sobre o crime de Ecocídio, a partir do olhar sobre o Cerrado, mas que certamente expressa a situação de outras realidades: considerando a co-constituição povos-natureza, os danos graves, a destruição ou perda de ecossistemas representa uma ameaça à própria condição de reprodução social e permanência dos povos do Cerrado como povos culturalmente diferenciadas. Neste sentido, afirma que o ecocídio do Cerrado não pode ser compreendido sem levar em consideração a real e concreta ameaça de genocídio cultural dos seus povos.

“Entendemos que se nada for feito para frear o que está ocorrendo no Cerrado, não se tratará apenas de históricos danos graves e vasta destruição. Estamos diante da ameaça de aprofundamento irreversível do Ecocídio em curso, com a perda (extinção) do Cerrado nos próximos anos e junto com ele a base material da reprodução social dos povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais do Cerrado como povos culturalmente diferenciados, ou seja, seu genocídio cultural”, diz trecho da acusação apresentada pela Campanha aos membros do TPP e ao júri em seu lançamento.