Decisão do TCM garante importante passo na luta de artistas e coletivos culturais

Foto: André Bueno / Rede Câmara

Na noite desta terça-feira (9), o Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM) ordenou a suspensão do edital que buscava privatizar as 20 Casas de Cultura da capital. A medida é tomada após uma ampla agenda de protestos do setor cultural das periferias e impôs uma derrota importante ao prefeito Ricardo Nunes (MDB).

O plano da atual gestão, representado pela secretária de Cultura Aline Torres, é transferir as Casas de Cultura do município de São Paulo para a gestão de entidades privadas por cinco anos, com a possibilidade de renovação dos contratos. Artistas, realizadores culturais e a Frente SOS Casas de Cultura afirmam, no entanto, que o edital de privatização, lançado em 27 de março pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC), tem uma série de irregularidades, além de não ter envolvido a própria comunidade cultural em sua elaboração. O edital é fruto de uma consulta pública lançada às pressas em 16 de dezembro de 2022, sem garantir participação da população e durante o recesso da Câmara dos Vereadores, ou seja, reduzindo a possibilidade de questionamentos sobre a ação da SMC.

“Uma batalha ganha, mas não a guerra”, avaliou o ativista e compositor Aloysio Letra sobre a suspensão do edital. “Os apontamentos do TCM corroboram com nossas denúncias de ilegalidade e desvio de função das casas”.

O conselheiro corregedor do TCM, João Antônio, afirmou que recebeu quatro representações de vereadores contra o edital, alegando que as ações violam o direito à cultura e descaracterizam a política pública, transferência ilegal e restrição à participação popular, além de falta de critérios e regras formais. Essas representações foram entregues pelos vereadores da mandata Elaine do Quilombo Periférico (PSOL), além de Senival Moura (PT), Luana Alves (PSOL) e Luna Zarattini (PT).

João Antônio apontou, ao todo, dez irregularidades levantadas pela Subsecretaria de Fiscalização e Controle, emitindo um relatório preliminar contra a publicação do edital. Entre as irregularidades, estão a falta de reserva dos recursos necessários para a contratação, a falta de metas e resultados para as atividades a serem executadas, a falta de parâmetros de linha curatorial na elaboração da programação artístico-cultural anual. O corregedor afirma ainda que a possibilidade de exceções ao plano de trabalho pode desigualar as entidades participantes do chamamento público.

Além disso, o edital não inclui um inventário dos bens de cada Casa de Cultura nem uma justificativa para a aquisição desses bens no programa de partida. A chamada não exige, também, uma experiência prévia das organizações inscritas no campo da cultura.

Os argumentos apontados pelo corregedor são similares à avaliação entregue à Mídia NINJA pelo grupo de trabalho jurídico da Frente SOS Casas de Cultura. O documento menciona falta de transparência e publicidade do edital, falta de critérios de avaliação, de provas de economicidade na adoção da política, além da insegurança jurídica em diversos artigos. Há “desrespeito às regras formais no tocante à competência do Conselho Gestor das Casas de Cultura, gerando nulidade do edital”.

A lei 11.325 de 1992, que regula as Casas de Cultura, em seus artigos 7° e 8° discorre sobre a obrigatoriedade de cada uma das 20 Casas de Cultura terem um conselho gestor com participação da sociedade civil. Contudo, atualmente as Casas de Cultura não têm conselhos gestores, desrespeitando a legislação. Com o edital e a intenção de cessão da gestão à iniciativa privada, essa ilegalidade iria se intensificar no entendimento do TCM. Segundo a lei os conselhos gestores devem ter participação das comunidades locais, influindo na gestão e na programação de cada um dos equipamentos culturais da cidade.

Gestão comunitária e sucateamento

Criadas na década de 90 durante a gestão da então prefeita Luiza Erundina e da Secretária de Cultura Marilena Chauí, as Casas de Cultura vêm enfrentando um processo de sucateamento no atual mandato de Ricardo Nunes.

São 20 Casas de Cultura que oferecem acesso a cursos, oficinas, shows e espetáculos para as populações dos bairros periféricos, proporcionando experiências culturais que são muitas vezes negadas à maioria da população que mora afastada do centro de São Paulo. Apesar das atuais investidas na coordenação das casas, elas foram criadas sob a premissa de uma gestão comunitária e participativa. Essa, contudo, é a principal reivindicação dos movimentos culturais populares diante do projeto de gestão privada proposto pela prefeitura.

De acordo com petição publicada pela Frente SOS Casas de Cultura, “trata-se da mesma estratégia desonrosa de sempre: “sucatear para privatizar”. As Casas sofrem com a escassez de servidores, falta de técnicos, falta de preservação e tem ações precárias para sua manutenção. Em audiência pública realizada em 9 de março deste ano, a própria secretária municipal de Cultura, Aline Torres, apontou um panorama de déficit no quadro de funcionários.

“As Casas, hoje, são compostas, em sua grande maioria, por dois ou nenhum servidor público, que é o servidor efetivo, um servidor comissionado, que são os coordenadores, um funcionário de limpeza e dois funcionários de vigilância por turno, e contam também, óbvio, com o apoio de alguns jovens monitores. Então, esse é o quadro geral de RH das casas”, resumiu Aline Torres, Secretária de Cultura.

Contudo, para lidar com essa situação, Aline argumentou que há dificuldades de burocratização na gestão do projeto e a única solução apresentada foi o que chamou de “gestão compartilhada”, mencionando parceria através do MROSC (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil). Para os movimentos culturais, no entanto, a manobra soa familiar: os serviços são negligenciados, sucateados para, em seguida, serem privatizados.

Foto: Gustavo Pagador

Aloysio Letra aponta que diversas outras tentativas de diálogo direto com a Secretaria de Cultura foram feitas antes da realização da audiência na Câmara Municipal em 9 de Março de 2023, todas sem sucesso. A primeira audiência sobre as Casas de Cultura foi em 7 de Abril de 2022, sem a presença da secretária de Cultura. “Após uma ampla pressão do setor cultural, ela compareceu a esta audiência”, disse Aloysio. Aquela foi a décima reunião pública na câmara dos vereadores chamada para tratar do assunto. “Mas ela não apresentou nenhum argumento para contrapor as reivindicações dos realizadores culturais e não se referiu ao que era mais importante, as leis das Casas de Cultura e abertura de concursos públicos na Secretaria de Cultura”.

“Esse edital é ilegal, por exemplo, porque não há conselhos gestores e particapação social para a sua construção. Os movimentos culturais reivindicam gestão direta na cultura e concursos públicos para gestores e técnicos para as Casas de Cultura”, complementou Aloysio. “Há todo um contexto de precarização de todo campo da cultura em esfera municipal, até mesmo em programas de fomento, deveria ter técnicos cuidando de cada programa individualmente, mas o que se vê são profissionais precarizados, atolados de trabalho. Não houve nenhuma vontade política para tirar as casas do sucateamento, todo o contexto apresentado é de entrega para as OS (organizações sociais)”.

Conforme depoimento de Gustavo Soares, do coletivo Periferia Invisível, publicado no portal Periferia em Movimento, “ainda não sabemos por qual razão a SMC quer implementar esse modelo, que já se mostrou ineficiente, pouco transparente e autoritário, não levando em consideração uma característica fundamental das Casas de Cultura, que é exatamente o vínculo comunitário”.