Por Marta Dillon, publicado no Página 12 

Amanheceu e foi uma festa. E dançamos entre os escombros da cidade que havíamos desfeito e reconstruído a nosso modo. Nos abraçamos, choramos, nos parabenizamos, nos recordamos mutuamente de tantas outras marchas diferentes a esta que andou devagar pela Avenida Callao, as velhinhas caminhando juntas atrás da bandeira verde, as garotas pulando; todas chorando e abraçadas.

Foto: Cobertura Colaborativa 13J

Todas sentindo que por fim nosso desejo havia transbordado, despejado tudo ao nosso redor e nos deixado ao centro, obrigando aos que queriam e aos que não queriam a falar nossa língua: autonomia, soberania dos nossos corpos, direito de decidir; tudo isso votado pelo sim, argumentado na arena pública, defendido na rua no frio, contra qualquer mau prognóstico, contra as estratégias de uma contagem que ao fim, disse nossos nomes. Não é fácil descrever a rua, não é fácil colocar em palavras o desejo de que nada avance e pare em lágrimas e canções, em sorrisos e abraços. Em reconhecimento a nossas lutas e nossa persistência feminista.
Amanheceu e foi uma festa. O sol se colocou entre os edifícios e nos beijou a cara. As velhinhas dançaram a frente da bandeira verde que avançava devagar como numa procissão, um êxtase que falava em habitar o próprio paraíso desobediente.

Velhinhas como se diz das Mães da Plaza de Maio, com esse carinho, com esse reconhecimento que os passos de hoje se agitaram, elevando um bastão ao céu que
era verde abrindo caminho, e o abriram para a festa feminista que suspendeu o tempo e o mudou tudo.
É média sanção mas será lei, assim como dizem os textos jurídicos, e reafirmamos, será lei porque assim será justo.

A noite não foi longa porque inventamos uma noite fora do calendário. Impossível reconhecer a Avenida Callao sob o acampamento coletivo, a música tocando, as fogueiras acesas sobre o asfalto.

Foto: Cobertura Colaborativa 13J

Foi uma reunião das bruxas onde evocamos as notícias duvidosas que chegavam de dentro do recinto a força de dormimos de conchinha umas com as outras, uns com outras, umas com outros. A céu aberto, comunidades inteiras de adolescentes enrolados entre mantas e sacos de dormir, amenizando o cansaço e o frio que também foi suspenso.

Foto: Cobertura Colaborativa #13J

Não poderíamos amanhecer de outra maneira, e assim o fizemos. A vida não segue igual até que a rua tente retomar seu ritmo. O festejo transborda nossas fronteiras, transborda os telefones, ele pára além do que a sociedade o chame porque paramos e mudamos tudo.

Este movimento é impossível de parar e todos sabem; depois de tantos anos do aborto à margem, de nenhum deles nos Encontro de Mulheres, depois de vítimas que não teriam que ser vítimas, aqui estamos, somos poderosas.

As que agradecem por termos vivido para ver este amanhecer, as que com os primeiros raios de sol se instalaram na vida adulta com uma vitória política que elas mesmas impulsionaram. As adolescentes de olhos vermelhos tem outra vida pela frente e isso fizemos juntas. Nenhuma será mais a mesma desde hoje, e somos portanto mais poderosas e disso não temos dúvidas: Será lei.

O aborto legal será lei porque assim será justo.

Foto: Soledad Gryciuk