Nesta entrevista, Leo Moreira Sá fala sobre sua trajetória nas artes cênicas e cita os desafios do ativismo LGBTQIAPN+ no Brasil

Leo Moreira Só. Foto: Arquivo pessoal

Por Kaio Phelipe

Leo Moreira Sá é um multiartista premiado, sendo o primeiro artista trans a ser indicado e a receber o Prêmio Shell, em 2011, pela iluminação no espetáculo Cabaret Stravaganza. Nesta entrevista, Leo fala sobre sua carreira nas artes cênicas, a recente participação na série Manhãs de Setembro, de Dainara Toffoli e Luís Pinheiro, no filme Vento Seco, de Daniel Nolasco, a importância do Coletivo de Artistas Transmaculines (CATS) e lembra sua trajetória como baterista da banda de punk rock As Mercenárias, que teve auge durante os anos 80.

Leo também dividiu as vivências dos primórdios do ativismo LGBTQIAPN+ no Brasil, nas reuniões do grupo Somos e na fundação do grupo Ação Lesbo-feminista (ALF).

Você sempre esteve ligado às artes. Inicialmente, como baterista da banda As Mercenárias. Mas como o teatro surgiu em sua vida?

Leo Moreira Sá – Desde criança eu tenho esse talento para a arte, que foi potencializado por uma reclusão compulsória, em consequência das múltiplas formas de transfobia que sofri. Sozinho, concentrei minhas energias em expressões artísticas, criando universos possíveis para a minha existência enquanto pessoa trans. Aos sete anos, eu já tinha aprendido a ler com histórias em quadrinhos e devorava uma coleção do Monteiro Lobato, de uma irmã mais velha. Gostava de desenhar meus heróis de HQ e pintava quadros com aquarela. Com 10 anos, aprendi a tocar violão e a música foi minha grande paixão até a adolescência. Aos 18, fiz um curso de teatro e participei da montagem de um grupo amador da peça Eles Não Usam Black-tie, de Plínio Marcos. Meu professor de teatro era marxista e foi com ele que entendi a arte enquanto um potente instrumento político. Eu morava em SBC [São Bernardo do Campo], que era palco das lutas operárias no final dos anos 70 contra o regime militar, e esse contexto político me fez estudar muito e entrar na USP [Universidade de São Paulo], no curso de Ciências Sociais, em 1980. Me envolvi com o movimento estudantil, participei do grupo Somos, o embrião do ativismo LGBTQIAPN+, e depois do ALF, Ação Lesbo-feminista. O que oficializou meu artivismo foi a minha participação na banda Mercenárias, onde encontrei tudo o que me afetava até aquele momento referente à arte enquanto ação política. Quando a banda terminou, em 1988, fiquei meio sem rumo, principalmente quando a Circus, uma casa noturna de música eletrônica que eu abri no início dos anos 90, faliu. Eu já estava abusando do álcool e cheirando todo dia, com os credores me perseguindo, principalmente o traficante que eu devia. Acabei entrando no tráfico para saldar as dívidas e aquilo virou uma bola de neve. Só acordei 10 anos depois dentro de um presídio. Em 2009, saí da cadeia sem nenhuma perspectiva. Foi quando ganhei uma bolsa da prefeitura (POT – Programa Operação Trabalho), onde eu tinha que cumprir uma grade curricular e daí voltei a fazer teatro, entre outras opções voltadas para o mercado de trabalho. Foi quando cheguei no Satyros e reencontrei o diretor Rodolfo García Vázquez, que tinha sido meu colega na faculdade, nos anos 80, e foi ele quem me ensinou os fundamentos das artes do palco. A arte me acolheu através dele e me salvou.

Conseguimos te assistir em muitos espetáculos, séries, filmes e documentários. Qual personagem ainda gostaria de fazer?

Leo Moreira Sá – Nos meus 13 anos de carreira no teatro e no audiovisual, com exceção de algumas pontas que fiz porque, infelizmente, precisava do cachê, eu tive alguns bons papéis dos quais me orgulho muito. Mas, ultimamente, tenho recebido muitos convites para fazer personagens menores em projetos do audiovisual, muitos que não possuem nem nome, “o careca”, “o mecânico”, “o coveiro”, aqueles que nenhum ator profissional quer fazer. Isso é ofensivo e denota a transfobia do mercado artístico. Desejo, para mim e para todes artistas transmasculines, a possibilidade de fazermos bons personagens que tenham importância na trama, que não tratem só das nossas mazelas, reforçando estereótipos que acabam contribuindo para embasar discursos de ódio.

O transfake tem aparecido em algumas discussões, mas ainda nos deparamos com pessoas cis aceitando interpretar personagens trans. A arte sempre esteve em momentos importantes da sua vida, certo? Diante disso, qual é o objetivo do CATS (Coletivo de Artistas Transmaculines)?

Leo Moreira Sá – Em 2017, quando eu, a Renata Carvalho e um grupo de artistas trans lançamos o Manifesto Representatividade Trans, fomos muito criticades, até mesmo por algumas pessoas da nossa comunidade. Foi quando a Glória Perez escalou a atriz cis Carol Duarte para interpretar o personagem transmasculino Ivan, na novela A Força do Querer, se justificando que não havia encontrado um ator transmasculino à altura do papel. É dela a frase antológica: “Não é porque é trans que tem talento pra viver um personagem trans”. Mas, infelizmente, na época, boa parte da nossa comunidade apoiava o transfake. Inclusive, ativistas do IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) deram suporte para a construção do personagem Ivan, acompanhando os ensaios da atriz cis Carol Duarte. De lá para cá conseguimos aos poucos mostrar a legitimidade da nossa luta por representatividade e acesso ao mercado de trabalho do CIStema artístico e, hoje, quem fizer um transfake sabe que será detonado. Em 2019 fiz uma ponta, obviamente, porque precisava muito do cachê, em Agreste, um longa-metragem onde o personagem protagonista que era transmasculino foi interpretado por um ator cis gay. Até hoje esse filme não estreou porque acredito que eles entenderam que a prática do transfake iria queimar toda a produção, equipe e elenco. Acho que essa é a grande prova de que avançamos. Depois que lançamos o Manifesto Representatividade Trans, percebi que nós, artistas transmasculines, precisávamos também lutar por visibilidade. Quando comecei minha carreira em 2009, não conhecia outro artista transmasculine. Dez anos depois eu conhecia meia dúzia, no máximo, e eu sabia que nós existíamos, mas éramos invisíveis até mesmo dentro da nossa própria comunidade. Foi quando procurei o Daniel Veiga e, um pouco antes da pandemia, começamos a construir um manifesto que representasse as nossas especificidades e demandas, que não eram contempladas no Manifesto Representatividade Trans. Feito isso, a gente precisava encontrar artistas transmasculines para se juntar a nós e a gente tinha medo de não encontrar um número suficiente, que justificasse a criação de um coletivo. Felizmente estávamos enganades. Quando fundamos o CATS, brotaram artistas de todas as partes do Brasil e hoje temos quase 100 participantes. O CATS fez a conexão de artistas transmasculines que não se conheciam e muitos se sentiam sozinhos. Criamos um grupo de WhatsApp que funciona como rede de apoio e troca de informações sobre oportunidades de emprego e eventos pertinentes à nossa comunidade. Dessa forma amadora, mas bastante eficiente, vamos completar, no próximo mês de agosto, três anos de existência. A indicação ao 33° Prêmio Shell, na categoria Energia Que Vem Da Gente, é o reconhecimento de que nossa luta é legítima, urgente e vital.

Léo Moreira Sá foi o primeiro artista trans a ser indicado e a ganhar o Prêmio Shell, em 2011. Foto: Arquivo pessoal

Sendo o primeiro artista trans a ser indicado e a ganhar o Prêmio Shell, em 2011, pela iluminação do espetáculo Cabaret Stravaganza, como foi ver tantos nomes na lista do prêmio, em 2023? Você concorda que muito desse avanço tem influência da sua história de vida e ativismo? Para você, é possível separar a arte do ativismo?

Leo Moreira Sá – Quando a arte me resgatou, me inserindo no maravilhoso mundo do teatro, eu só pensava em reconstruir minha existência e consolidar minha carreira artística. Tive a sorte de ter sido treinado pelo mestre Rodolfo e estar no Satyros, um espaço artístico acostumado a abraçar pessoas trans. Desde o início da minha carreira, o foco central da minha arte sempre foi falar das vivências da minha comunidade. Foi um grande desafio levar o tema da transmasculinidade para os palcos, numa época em que nem o movimento social de pessoas trans contemplava nossas demandas, e receber muitas críticas, até mesmo de pessoas que se diziam libertárias. O que posso dizer é que não há nada de glamouroso em ser o pioneiro. É muito difícil e sofrido. Ser artivista envolve luta, resistência e coragem para romper as barreiras da transfobia estrutural. Eu nasci como artista em contexto político e é impossível separar a arte da política em minhas expressões. Já perdi amigues e oportunidades de trabalho, mas não negocio minha consciência de forma alguma. Quando construí, junto com o Rodolfo, a luz do Cabaret Stravaganza, que ganhou o Prêmio Shell, eu não tinha ideia da dimensão da porta que estava sendo aberta. Eu só pensava que precisava ser perfeito, como toda pessoa trans precisa ser para obter reconhecimento e ser valorizada. Hoje, para mim, é uma grande emoção poder testemunhar a grande mudança que a luta por representatividade, que travei ao lado de outres artivistas trans, fez acontecer. Estar vivo para presenciar o reconhecimento do talento de tantes artistas trans é o grande prêmio que nós, artivistas, queremos receber. No ativismo, sabemos que lutamos para que as novas gerações possam viver em um mundo mais justo. Transformações estruturais não acontecem da noite para o dia e, às vezes, podem demorar décadas. Mas considero meu espetáculo autobiográfico, Lou&Leo, de 2013, o pioneiro em representatividade transmasculine, onde eu fui dramaturgo, produtor, iluminador e protagonista de minha própria história. É um marco em representatividade que tenho muito orgulho em ter protagonizado.

Aonde iremos poder te assistir em 2023? Tem algum projeto em mente?

Leo Moreira Sá – No teatro, estou trabalhando em um novo projeto de monólogo, que vai refletir sobre o apagamento que as transmasculinidades sofreram ao longo da história. No audiovisual, estou tentando me firmar como autor, além de ator. Na pandemia, foquei meus estudos em criação de roteiros e concebi um projeto de série de TV, inspirada em um recorte da minha vida que se passa nos anos 90. A Bíblia está, enfim, finalizada, com a parceria de uma produtora, e já estamos buscando recursos em editais para o desenvolvimento e roteirização e/ou venda direta para as plataformas de TV. Tenho o projeto de um livro, que está há muito tempo sendo desenvolvido, mas ainda não tive tempo pra finalizar com tantas demandas de trabalho que é necessário encarar para sobreviver de arte no Brasil.