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por Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras

Nota pública da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras sobre a deliberação do veto presidencial ao PL 2.538/2019, que pretendia obrigar os serviços de saúde a denunciarem casos de (suspeita de) violência contra a mulher à polícia

Aproxima-se o prazo para que o Congresso Nacional analise o veto presidencial ao PL 2.538/2019, que pretendia obrigar os serviços de saúde a denunciarem casos de (suspeita de) violência contra a mulher à polícia. Até 09 de novembro próximo, senadora(e)s e deputada(o)s devem deliberar o veto em sessão conjunta.

Desde a publicação do veto, vimos discussões acaloradas entre os diversos setores da sociedade nas redes sociais e na mídia. Diante de concepções equivocadas e precipitadas que lemos sobre o tema, consideramos importante esclarecermos alguns pontos dessa discussão, especialmente para deputada(o)s e senadora(e)s que deliberarão sobre o veto:

1. O que é violência contra a mulher?

A violência contra as mulheres é definida como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, inclusive decorrente de discriminação ou desigualdade étnica, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado.” (BRASIL, 2003). A violência contra a mulher pode ser perpetrada por agressor(es) desconhecido(s) (como é o caso da violência sexual), pelo Estado e seus agentes (violência institucional), ou por seu parceiro (violência física, emocional/abuso psicológico – ameaças e humilhações, por exemplo – comportamento controlador – a violência patrimonial é um exemplo – e violência sexual) (WHO, 2014).
BRASIL. LEI No 10.778, DE 24 DE NOVEMBRO DE 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial da União, 2003.

WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Health care for women subjected to intimate partner violence or sexual violence: A clinical handbook. Geneva: WHO, 2014.

2. Quem é a mulher que chega aos serviços de saúde com (suspeita de) violência?

Como existem vários tipos de violência contra a mulher e não apenas a violência física que produz lesões corporiais graves, muitas mulheres buscam os serviços de saúde para acolhimento e tratamento dos sintomas físicos e/ou psicológicos consequentes da violência sofrida. Muitas vezes, as lesões físicas são inexistentes nessas mulheres.

3. Como a denúncia à autoridade policial ajudaria a mulher em situação de violência?

No Brasil, ainda vivemos uma realidade de alta impunidade criminal. Para termos um exemplo, apenas 20% dos homicídios registrados em ocorrências policiais no país são solucionados* (MORIN; SOUTO, 2017).

Se a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras taxa de resolução de um crime como o homicídio é tão baixa, o que nos leva a acreditar que a denúncia do crime de violência contra a mulher – que raramente deixa vestígios ou tem testemunhas – levará à condenação do agressor e à eliminação do risco para a mulher? Ainda que já existam leis avançadas no país que visam coibir a violência doméstica – a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), o que o Estado Brasileiro tem feito para garantir proteção às mulheres? Em treze anos da lei, apenas 9,7% dos municípios brasileiros oferecem serviços especializados em atendimento a mulheres em situação de violência sexual e 8,3% possuem delegacias especializadas de atendimento à mulher (COSTA; TATSCH, 2019).

Além disso, a denúncia pode afastar a mulher dos serviços de saúde, que devem ser espaços de orientação e fortalecimento da mulher em situação de violência. Portanto, além de não ajudar a mulher em situação de violência, a denúncia compulsória à autoridade policial pode prejudicar ainda mais sua integridade física e psicológica.

* Aqui, entende-se por solução do crime o encaminhamento da denúncia ao Ministério Público (MORIN; SOUTO, 2017) e não exatamente o julgamento e condenação do crime.

MORIN, S.; SOUTO, C. ONDE MORA A IMPUNIDADE? Porque o Brasil precisa de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios. São Paulo: Instituto Sou da Paz, 2017.

COSTA, D.; TATSCH, C. Treze anos após Lei Maria da Penha, só 2,4% das cidades têm casas-abrigo para mulheres. Rio de Janeiro: O Globo, 2019.

3. Como o veto ao PL pode afetar os dados estatísticos para fins de elaboração de políticas públicas de prevenção e organização dos serviços de atendimento à mulher em situação de violência?

O PL 2.538/2019 não altera a obrigatoriedade dos profissionais de saúde em NOTIFICAR todos os casos de violência contra a mulher à Vigilância Epidemiológica/Ministério da Saúde. Essa notificação compulsória já é estabelecida por lei desde 2003 (BRASIL, 2003). Esses dados têm caráter sigiloso (são analisados em conjunto, e não individualmente) e devem ser utilizados para a elaboração de políticas públicas de prevenção e organização do fluxo de atendimento dos vários serviços da rede de saúde, segurança pública e justiça responsáveis pelo atendimento de mulheres em situação de violência.

Sabemos que a violência contra a mulher apresenta altos índices de subnotificação. Para termos uma ideia, em 2016, foram registrados 49.497 casos de estupro nas polícias brasileiras (boletins de ocorrências e/ou queixas criminais) e 22.918 casos no Sistema Único de Saúde (IPEA; FBSP, 2018). As duas bases de dados certamente não refletem a dimensão do estupro no país, já que a estimativa é que apenas 10% das mulheres em situação de violência sexual procuram algum tipo de ajuda na rede de segurança ou saúde. Isso porque a violência contra a mulher frequentemente está associada à vergonha e à humilhação, ao receio de ser tida como culpada pela violência sofrida e à sensação de invasão da sua privacidade (SANTI; NAKANO; LETTIERE, 2010).

A subnotificação da violência contra a mulher também tem relação com a desorganização dos serviços de saúde, com a sobrecarga de trabalho dos profissionais e com o medo advindo da ideia equivocada dos Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras profissionais de que a notificação à Vigilância Epidemiológica configura DENÚNCIA ao sistema de segurança. Vejamos que em um estudo conduzido nas unidades básicas de saúde de Belo Horizonte em 2011, KIND et al. (2013) verificaram que a notificação tomada como denúncia foi um dos motivos que explicaram a subnotificação dos casos de violência contra a mulher naquele município.

Se já existem evidências de que a ideia de denúncia à polícia prejudica a notificação à Vigilância Epidemiológica, por que aprovar um projeto de lei que justamente dificulta nossos dados estatísticos relacionados à violência contra a mulher?

BRASIL. LEI No 10.778, DE 24 DE NOVEMBRO DE 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial da União, 2003.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA); FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Atlas da Violência 2018. Rio de Janeiro, 2018.

KIND, L.; ORSINI, M. L. P.; NEPOMUCENO, V. et al. Subnotificação e (in)visibilidade da violência contra mulheres na atenção primária à saúde. Cad. Saúde Pública, v. 29, n. 9, p. 1805-1815, 2013.

SANTI, L. N. de; NAKANO, A. M. S.; LETTIERE, A. Percepção de mulheres em situação de violência sobre o suporte e apoio recebido em seu contexto social. Texto contexto – enferm., v. 19, n. 3, p. 417-24, 2010.

4. De que maneira o PL fere a autonomia e a dignidade da mulher?

Se consideramos que uma mulher em situação de violência não tem autonomia para decidir sobre a denúncia do crime sofrido devido a sua condição de vulnerabilidade, estamos retirando-lhe sua dignidade, seu direito à privacidade, garantidos por nossa Constituição Federal (arts. 1o e 5o). Retirar a autonomia da mulher significa deixá-la na condição de incapaz, de uma pessoa que não pode decidir por si mesma. No entanto, sabemos que a mulher violentada, pessoa adulta, continuará fazendo suas escolhas na esfera da sua intimidade, da sua privacidade.

Não respeitar a autonomia da mulher em recusar a denúncia do crime sofrido à polícia significa negar-lhe o direito de acesso aos serviços de saúde pois, como pessoa adulta e capaz, exercerá, de uma maneira ou de outra, sua autonomia em recusar um serviço que lhe imponha a condição da denúncia para o atendimento.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto Legislativo no 186/2008. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016. 496p.

5. Qual é o papel do sigilo profissional na proteção das mulheres em situação de violência?

O dever do sigilo profissional é um dos pilares dos códigos de ética dos profissionais de saúde (COFEN, 2017; CFM, 2018; CFP, 2005; CFESS, 2012) porque está relacionado ao estabelecimento do vínculo de confiança entre a mulher e o profissional. É esse vínculo que deixa a mulher confortável para revelar a situação de violência sofrida. A quebra do sigilo profissional nas situações de violência contra a mulher, portanto, pode levar a uma erosão irreversível dessa relação de confiança com o profissional de saúde Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras (BEAUCHAMP & CHILDRESS, 2013), culminando no afastamento da mulher dos espaços de acolhimento, tratamento e orientação (HYMAN; SCHILLINGAN; LO, 1995; THOMAS, 2009).

Vale ainda lembrar que o sigilo profissional também está regulamentado no Código Penal Brasileiro, Seção IV “Dos Crimes Contra a Inviolabilidade dos Segredos” (BRASIL, 1940):

Violação do segredo profissional Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem. Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.”

BRASIL. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto-Lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, 1940.

CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM (COFEN). RESOLUÇÃO COFEN No 564/2017. Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Brasília, 2017.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM). RESOLUÇÃO CFM No 2.217/2018. Aprova o Código de Ética Médica. Brasília, 2018.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília, 2005.

CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de ética do/a assistente social. Lei 8.662/93 de regulamentação da profissão. 10a. ed. rev. e atual. Brasília: Conselho Federal de Serviço Social, 2012.

HYMAN, A.; SCHILLINGAN, D.; LO, B. Laws Mandating Reporting of Domestic Violence: Do They Promote Patient Well-being? JAMA, v. 273, n. 22, p. 1781-7, 1995.

THOMAS, I. Against the Mandatory Reporting of Intimate Partner Violence. Virtual Mentor, v. 11, n. 2, p. 137-40, 2009.

6. Em quais situações é possível a quebra de sigilo profissional por meio de denúncia às autoridades policiais e da justiça?

A quebra do sigilo profissional nos casos de violência contra a mulher encontra-se regulamentada na Lei 10.778/2003 (BRASIL, 2003):

“Art. 3o – A notificação compulsória dos casos de violência de que trata esta Lei tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido. Parágrafo único. A identificação da vítima de violência referida nesta Lei, fora do âmbito dos serviços de saúde, somente poderá efetivar-se, em caráter excepcional, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo da autoridade sanitária e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável.

Compreendemos, portanto, que uma mulher atendida em um serviço de saúde com lesões corporais graves, que a colocam em risco iminente de morte, pode ter seu caso denunciado à polícia para que o Estado garanta sua proteção. No entanto, lembramos que a mulher deve ter o conhecimento prévio da denúncia, conforme estabelecido na referida lei.

Devemos ainda considerar os casos dos crimes de natureza pública incondicionada, que não dependem da queixa da mulher para a persecução criminal, como é o caso das lesões corporais graves da violência doméstica (Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006) e do crime de estupro (Lei 13.718/2018). Nesses casos, é possível que a denúncia à polícia seja feita pelos profissionais de saúde, desde que haja o desejo e o consentimento da mulher.

BRASIL. LEI No 10.778, DE 24 DE NOVEMBRO DE 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial da União, 2003. BRASIL. LEI No 11.340, DE 07 DE AGOSTO DE 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.. Diário Oficial da União, 2006. BRASIL. LEI No 13.718, DE 24 DE SETEMBRO DE 2018. Altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo; e revoga dispositivo do Decreto-Lei no 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Diário Oficial da União, 2018.

7. Quais estratégias podem ser implementadas no Brasil para prevenção da violência contra a mulher?

Aos gestores e parlamentares envolvidos na elaboração de políticas públicas para a prevenção da violência contra a mulher, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda a implementação de estratégias que visem (WHO, 2019):

1. o fortalecimento das habilidades relacionais entre homens e mulheres (habilidades de comunicação, manejo de conflitos e decisão compartilhada);

2. a amplificação do poder econômico e social das mulheres;

3. a garantia de serviços de saúde, de segurança pública e justiça que funcionem de maneira articulada;

4. a redução da pobreza e da desigualdade econômica entre as mulheres (programas de transferência de renda, facilitação de empréstimos e estímulos empregatícios direcionados a mulheres);

5. a segurança dos espaços públicos e dos ambientes de trabalho;

6. a prevenção da violência contra crianças e adolescentes;

7. a transformação de normas, valores e atitudes da sociedade (estratégias que desafiem as normas e estereótipos de gênero que levam à manutenção de situações de subordinação das mulheres na sociedade).

WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). RESPECT women: Preventing violence against women. Geneva: WHO, 2019.

8. Qual é o papel do profissional de saúde na proteção das mulheres em situação de violência?

Todo profissional de saúde deve estar devidamente qualificado para o acolhimento de mulheres em situação de violência. O acolhimento requer do profissional de saúde: escuta ativa sem julgamentos, orientação sobre os recursos da rede local de apoio (serviço social, segurança pública e justiça) à mulher em situação de violência, avaliação e planejamento da segurança da mulher (e filhos), registro adequado em prontuário e notificação compulsória do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), prescrição de profilaxias quando necessário, encaminhamento para acompanhamento psicológico ou psiquiátrico quando necessário. Os profissionais de saúde da rede local devem receber treinamento para o atendimento
qualificado de mulheres em situação de violência (doméstica ou sexual) (WHO, 2013).

WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Responding to intimate partner violence and sexual violence against women: WHO clinical and policy guidelines. Genevea: WHO, 2013.

9. O veto presidencial ao PL 2.538/2019 foi uma conquista nossa: profissionais da saúde (Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, Associação Brasileira de Enfermagem Obstétrica, Grupo de Estudos sobre o Aborto), da Defensoria Pública Especializada em Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM – SP) e de instituições civis (Agência Patrícia Galvão e Católicas pelo Direto de Decidir). Pessoas que convivem diariamente com mulheres em situação de violência. Pessoas que escutam as vozes das mulheres violentadas. É preciso escutar essas vozes e resistir a qualquer retrocesso ou retirada de direitos das mulheres. É preciso superar as divergências partidárias e dizer SIM ao veto!

10. Organizações e Associações que apoiam o VETO ao PL 2.538/2019:

ABENFO
Agência Patrícia Galvão
ANADEP – Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos
Anis – Instituto de Bioética
Associação Artemis
Católicas Pelo Direito de Decidir
Comissão de Pré-Natal, Comissão de Violência Sexual e de Interrupção de Gestações da Febrasgo Grupo Curumim – Gestação e Parto
Grupo de Estudos Sobre Aborto
Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras
Rede Médica Pelo Direito de Decidir