Foto: Mídia NINJA

Desde 2006, a Lei Maria da Penha garante que as vítimas de violência doméstica tenham suporte e que os autores da violência sejam responsabilizados pelos atos cometidos. Dentro da própria lei existe também um mecanismo que dá alternativas a essa responsabilização para que não seja o cárcere ou medida protetiva. Tudo isso faz parte das políticas de enfrentamento a esse tipo de violência e essa medida é o atendimento psicológico oferecido por alguns núcleos de tratamento.

No estudo Programas de atenção a homens autores de violência contra as mulheres: um panorama das intervenções no Brasil, Adriano Beiras, Caio Incrocci e Marcos Nascimento fazem uma análise de programas de enfrentamento à violência contra a mulher. O estudo localizou 41 iniciativas que trabalham com homens autores de violência e mostra que, por muitos anos, o foco era a acolhida das mulheres, estímulo às denúncias, proteção e organização dos dados a fim de ter um panorama geral da situação enquanto problema de saúde pública, de forma a fomentar políticas de combate.

Com o aumento da discussão sobre masculinidade tóxica e perspectiva de gênero, nota-se que programas focados em trabalhar a questão de gênero com o autor da violência tem aumentado e ganhado espaço. Dessa forma, combatendo a violência na raiz, tem se mostrado que é possível romper seu ciclo, entendendo como ela se origina e pensando estratégias para prevenção e conscientização.

Em Brasília (DF), o NAFVAD – Núcleos de Atendimento às Famílias e aos Autores de Violência Doméstica desde 2003 realiza acompanhamento psicossocial com mulheres e homens envolvidas/os em situações de violência doméstica e familiar contra mulheres, e que trabalha na perspectiva de trazer essas alternativas. São 9 núcleos que, descentralizados, operam nas regiões administrativas do Distrito Federal. De janeiro a junho deste ano, já realizaram 3.436 atendimentos, entre grupais e individuais, com homens, mulheres e crianças.

Os homens não costumam chegar espontaneamente porque nem todos se reconhecem como agressores. Então, é preciso que a vítima faça uma denúncia e, dentro do processo judicial, eles são encaminhados aos programas de reflexão. Todos passam por um momento individual, onde se entende a história do autor e tem um espaço de escuta. Depois são encaminhados para o grupo que, segundo Mariana Balduíno, psicóloga, funciona melhor como método pela vazão das angústias e motivações. São 10 encontros com duas horas de duração e todos são temáticos.

A abordagem inicial também prevê entender o contexto de como aconteceu a violência, situação socioeconômica, atual situação do autor com a vítima. Depois do programa, alguns homens são encaminhados a serviços de saúde, por exemplo, em casos de envolvimento com álcool, programas sociais, cuidados específicos quando diagnosticado algum transtorno como depressão. Existem os casos em que alguns seguem com a psicoterapia.

As mulheres entram de modo diferente, elas são convidadas a participar do acompanhamento no momento da denúncia ou nas audiências, e o foco com elas é o trabalho de fortalecimento e empoderamento, para romper o ciclo de violência. A metodologia é parecida, com atendimentos individuais e em grupo, mas os privados são em maior número porque elas geralmente querem mais ser ouvidas e precisam de mais suporte.

O trabalho nos NAFAVDs está alinhado com estudos e pesquisas que compreendem que a violência contra as mulheres têm origem na manutenção dessas desigualdades entre homens e mulheres, principalmente no que se refere às relações de poder e privilégio designado aos homens. O alto índice de ocorrências de crimes tipificados na Lei Maria da Penha evidencia uma sociedade ainda alicerçada em valores e padrões machistas e patriarcais.

“Muitos citam depois de alguns encontros que percebem como fez falta não ter o pai na infância e não sabe bem como lidar com os filhos”, conta Mariana, “como não percebiam que exerciam controle dentro de casa, e vão se prontificando às mudanças”.

As origens da violência são muitas, e de acordo com psicólogas que trabalham no programa em Brasília, alguns homens têm históricos de violência familiar, envolvimento com entorpecentes, cometeram atos violentos em situação de forte estresse e também em momentos de culpa, como não conseguir um emprego ou ajudar a família. E nem sempre as violências acontecem apenas com casais. Irmãos, pais, tios também podem ser autores de casos de agressão, física, psicológica, patrimonial. Quando há uma violência grave ou feminicídio, o caso não é tratado nos programas de reflexão.

De acordo com psicólogas que trabalham no programa, os autores atendidos frequentemente relatam sentimento de serem estigmatizados pela justiça e pela sociedade. Preferem não pegar atestado para levar ao trabalho, por exemplo, com receio do julgamento que vão sofrer. E isso demonstra que não há abertura entre os próprios homens para falar sobre comportamentos e situações que disparem gatilhos de violência.

De forma geral, ao final do acompanhamento a maior parte relata ter se beneficiado, pois refletiu sobre temas que não conversa com ninguém e conseguiu perceber melhor a violência nas relações. Muitos relataram saírem mais preparados para lidarem com conflitos relacionais.

“É um espaço em que aos poucos as fichas vão caindo. Não é óbvio que performar essa masculinidade é violento”, diz. “O aprisionamento nesses casos não é efetivo porque ele precisa associar que esses comportamentos são violentos e ele ter outros comportamentos identificatórios, acessar nas discussões conhecimentos e diálogos, ter novos repertórios para lidar com a raiva, eles vão se repensando.”

Não se trata de aliviar a pena ou fingir que não existiu violência, mas mostrar o que há por trás do comportamento que reforça que a masculinidade envolve brutalidade e ajudar a desconstruí-lo, tornando o autor consciente e capaz de romper um ciclo estimula as agressões. É estimular a não-violência para combater a violência.