Texto publicado originalmente no Brasil de Fato, por Denise De Sordi.

No célebre livro Raízes do Brasil, publicado pela primeira vez em 1936, Sérgio Buarque de Holanda se debruçou sobre a ideia de Raízes para encontrar as relações entre o passado e o futuro de um país que se alvoraçava entre mobilizações políticas, a formação de um liberalismo tropical e de um projeto integralista. Nosso fascismo de camisas verdes, como denominaram Odilon Caldeira e Leandro Gonçalves, em livro lançado 84 anos depois.

Entre as permanências e mudanças da história, o título atribuído por Holanda a seu livro, inspirou, em 2017, a criação do projeto “Raízes do Brasil” pelo Movimento dos Pequenos Agricultores, o MPA. Raízes do Brasil compõe uma rede de espaços urbanos voltados para a alimentação agroecológica, escoamento de produtos do campo, conexão entre os produtores de alimentos campesinos e os consumidores da cidade, cultura e debates sobre política nacional e latino-americana. Durante as últimas eleições, o Raízes cumpriu o papel de ser também ponto de resistência aos camisas verdes – e amarelas – de hoje.

Se Holanda evocou “raízes” para propor a reflexão sobre as características e a mentalidade que forjaram o Brasil, ocupando-se das contradições nacionais para pensar um tipo de projeto e análise sobre como certa mentalidade da casa grande se espalhou e estendeu no tecido das relações sociais, o MPA elegeu “Raízes” para indicar um projeto de resistência política a estas características hegemônicas de nossa formação social. Assim, o Movimento propõe a recomposição das relações entre campo e cidade e reivindicando “um campo diferente para o campesinato brasileiro”.

A intenção põe de ponta cabeça as raízes enquanto manutenção de privilégios que se arvoraram em relações de poder político para os que detiveram desde sempre, não só o domínio do rural, mas da formação do urbano. Para o MPA, as raízes do Brasil são feitas com a “herança dos povos originários, solidificada por meio do trabalho, da cultura, da luta de negros e negras escravizados, aos quais se somou a força de trabalho de famílias imigrantes europeias e asiáticas, que acorreram a essas terras fugindo da fome em seus países de origem, muitas delas, famílias de camponeses”.

A escolha do nome “Raízes do Brasil” afirma que “no país existem raízes” e essas “se expressam pela cultura, pela política, pela alimentação”. Como Humberto Palmeira, coordenador nacional do MPA, explicou à pesquisadora Jennifer Tanaka, a escolha do nome é “memória ao livro do Sérgio Buarque de Holanda, ainda [que] com algumas discordâncias com o autor, mas que existem as raízes […] e para a gente poder dar um salto social, a gente precisa entender essas raízes”.

Os espaços Raízes do Brasil têm o papel de, por meio da alimentação e da cultura, cultivar o sentimento de pertencimento a um país que tende à importação da violência política no campo e na cidade e a rejeitar a possibilidade de uma vida digna aos trabalhadores campesinos e urbanos, negando-lhes o acesso a uma alimentação que seja culturalmente rica e biologicamente nutritiva. As unidades do Raízes são ainda pontos de distribuição e consumo de alimentos por meio da Cesta Camponesa, do Café Camponês, da Loja Camponesa e da organização das Feiras Agroecológicas que se espalham pelas cidades. Das unidades do Raízes saem ainda os alimentos para campanhas nacionais, a exemplo do Mutirão contra a fome iniciado pelo MPA em 2020.

Como afirmou a produtora camponesa Miriam Firmino, quando uma pessoa adentra o espaço Raízes do Brasil, toma o Café Camponês que é servido nas unidades, ou compra produtos sem veneno na Loja ou na Cesta Camponesa, ela sabe que “daquela forma, está se alimentando, e não se envenenando”.

Em um período no qual as áreas plantadas de feijão, arroz e mandioca tendem a desaparecer em favor de políticas que privilegiam commodities, a flor da mandioca, presente no logotipo do Raízes do Brasil, lembra que esse resistente alimento, em seus diversos tipos, está enraizado em todo o território nacional, e que há uma cultura alimentar ancestral a ser preservada, considerando as características regionais e nacionais, que nos unem em nossos hábitos, gostos e formas de viver.

Como lembrou Maria Emília Pacheco, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, iniciativas como o Raízes do Brasil, com sua gama de atividades, impulsionam o “consumo de alimentos in natura, de acordo com características das culturas alimentares”, nos permitindo o “direito ao gosto”, o qual estamos perdendo em meio ao “processo de padronização, de uniformização e de redução da variedade de alimentos” que consumimos.

Se só a solidariedade de classe entre os sujeitos do campo e da cidade permite avanços sociais em meio as raízes que particularizam o capitalismo brasileiro, é simbólico que a primeira sede do espaço Raízes do Brasil tenha surgido no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, a partir de uma aliança com os trabalhadores da Petrobrás, organizados na Federação Única dos Petroleiros, a FUP. No acordo coletivo de uma greve, os petroleiros conquistaram o acesso à alimentação saudável e nutritiva em seus refeitórios, e a partir de diálogos com o MPA, compreenderam que o combustível que precede aquele que move os tratores é o alimento produzido com o trabalho dos campesinos.

Foi com o apoio da FUP que a primeira unidade do Raízes do Brasil se concretizou e, atualmente, o MPA possui unidades também em Salvador, no bairro Pelourinho; em Sergipe, no bairro Santos Dumont, e no centro de Picos, no Piauí. Todas possuem o papel de serem centros de abastecimento, loja física para os produtos campesinos, centros da culinária camponesa com comidas e bebidas e espaços de debates e atividades culturais.

 Imagem do Raízes do Brasil no Rio de Janeiro. Foto: Bernardo Camara/Reprodução MPA

Como explica Leomárcio Silva, coordenador do Raízes do Brasil em Salvador, é um espaço “de encontro, onde as pessoas degustam os produtos que tão por ali, inclusive, cervejas artesanais, mas também dialogam e proseiam, como a gente costuma dizer”. Antes da abertura do Raízes do Brasil, somente no Rio de Janeiro existiam 12 famílias camponesas produtoras de alimentos agroecológicos no estado, após a chegada do projeto, em 2021 são 130 famílias, fixadas no campo fluminense, vivendo de seu trabalho no campo.

A abertura de unidades do Raízes do Brasil em diferentes estados é uma forma de o MPA criar tecnologias sociais entre campo e cidade, enfrentando o desaparecimento de alimentos que compõe a cesta básica nacional, mas, principalmente e de forma relacionada, o desafio presente para todos as famílias campesinas atualmente: a ausência de subsídios para a pequena produção familiar que, de um lado, impede o desenvolvimento da produção agroecológica em larga escala e, de outro, não permite o desenvolvimento de logística para o transporte de alimentos do campo para a cidade.

Como pontua Mateus Quevedo, coordenador de comunicação do MPA, o espaço do Raízes exemplifica uma das possibilidades de desenvolvimento logístico de circuitos curtos, com uma “iniciativa contra hegemônica diante do complexo industrial e logístico instaurado pelas grandes corporações que controlam o abastecimento de alimentos nas cidades”. A logística de distribuição da produção agroecológica campesina, é “um dos nossos maiores desafios […] Não tem como competir, com quem trabalha com a grande escala que vai conseguir ter um produto com um custo baixíssimo, que não vai valorizar a produção, e o camponês não vai ter um ganho justo”, esclarece Bruno Geraldo, coordenador do projeto Raízes no Rio de Janeiro. Em um país como o Brasil, no qual a maioria dos estados possuem dimensões territoriais expressivas, a logística é aspecto central para que a comida de verdade esteja disponível no campo e na cidade.

Além da logística, espaços como o Raízes do Brasil, de iniciativa popular para a criação de pontos de abastecimento urbanos, enfrenta barreiras para o acesso à politicas públicas que viabilizem sua existência no longo prazo. O MPA abre e desenvolve o projeto com recursos próprios são “feitos esforços para que essas operações se auto financiem, mas não é um processo tão simples, sobretudo quando requer investimento em algumas estruturas que são básicas para que funcione cada vez melhor”.

A importância da existência de locais como o Raízes em cenários cada vez mais individualizados como os assumidos pelas cidades brasileiras, se expressa na formulação de práticas que envolvem os temas da cidadania. Promovem a relação entre campo e cidade, a partir de um lugar “onde a gente tem se encontrado para fazer rodas de conversa, para fazer o diálogo e construções coletivas”, o que permite gerar “a consciência de que várias políticas, se não todas, inclusive a de reforma agrária, precisam ser defendidas também pelo povo que está na cidade […] são tarefas que requerem compromissos não só por quem está no campo.”

O impacto do trabalho do MPA com o Raízes do Brasil, sob o princípio geral de valorização da vida, que permite às centenas de famílias camponesas a “valorização do nosso produto, onde o consumidor consegue alcançar o que é feito aqui na roça”, promove a parceria entre a família camponesa e o povo da cidade, que passa a ver “qual é o trabalho que a gente faz na roça”, tornando-o “mais forte e mais valorizado”. Entretanto, há uma concorrência desleal – que está ancorada nas características das Raízes do Brasil de Holanda – que é o favorecimento ao agronegócio: “a produção convencional tem um monte de isenções fiscais dos agrotóxicos, das próprias sementes”.

A ausência de subsídios e de políticas públicas que coloquem a produção agroecológica das famílias camponesas como uma prioridade do desenvolvimento econômico e social nacional, gera uma quebra de circuitos na qual o alimento saudável não chega nas favelas e periferias do país devido a seu custo. A barreira do poder de compra dos trabalhadores é estrutural, definida em meio a um cenário de desemprego generalizado, inflação e empobrecimento brutais, e não pode ser enfrentada tão somente pelo MPA e pelos demais movimentos sociais do campo. Movimentos, cabe dizer, frequentemente criminalizados, perseguidos e difamados pelos agentes dos interesses do agronegócio e da mineração, que buscam reproduzir, no século XXI, a lógica de organização social fundadora, analisada por Holanda.

Não há política pública capaz de acabar com a expressão mais grave da pobreza – a fome – sem a valorização do trabalho de quem produz nossos alimentos e promove a preservação da terra. “Raízes” fala sobre nosso passado e também nos fala de algo que cresce em subterrâneo, criando a sustentação para nosso futuro. Como bem sabem os campesinos, se a terra está cuidada, tudo nasce e prolifera. Se está envenenada, morre e leva junto qualquer horizonte de transformação.

Por isso, pontos de encontro que organizam esses horizontes para o campo e para a cidade são tão importantes; permitem outras lógicas para o abastecimento de alimentos, como é o caso do Mercado Popular.