Por Elisangêla Marinho / Copa FemiNINJA

Historicamente, a sociedade sempre indicou, muitas vezes de forma severa, quais espaços a mulher deveria ou não ocupar. Mas, a mesma história nos fala das transgressoras que lutaram para estar onde queriam, fazendo o que desejavam. Assim foi em todas as áreas, inclusive no futebol. Desde as origens desse esporte, as mulheres mostraram interesse pela prática. Entretanto, ele fora criado para homens.

Os anos se passaram e, embora o número de garotas jogando futebol ou nos estádios assistindo jogos seja considerável, o preconceito em torno disso ainda é notável. A luta pelo reconhecimento do público feminino como consumidor de futebol é diária e projetos como o Minas de Estádio são criados justamente para fortalecer a identidade da mulher como torcedora.

A iniciativa nasceu em 2018, a partir da paixão de uma paulista por duas áreas: futebol e moda. Lili Filtre criou uma linha de camisetas femininas para serem usadas nos estádios. Parece simples, mas na verdade se trata de uma possibilidade de ser e se expressar. Usar o que se quer e onde se quer.
A roupa torna-se um instrumento de inclusão e empoderamento. Mas o movimento vai além, as Minas de Estádio se reúnem para conversar sobre igualdade de gênero, tomar cerveja e falar de futebol. Com isso, as mulheres ganham em oportunidades de existir, tanto individualmente como socialmente, um projeto com conotação positiva e transformadora.

Confira a entrevista completa com Lili Filtre, idealizadora do projeto Minas de Estádio:

Como surgiu sua relação com o futebol?
Meu amor pelo futebol veio com a influência do meu pai, um carinha que era fanático pelo Palmeiras. Quando me mudei pra Sampa, foi a chance de acompanhar o time que antes só via pela TV, e a primeira dúvida era: vou sozinha? Sim. Nenhuma outra amiga da época curtia futebol e não tive muita escolha, a não ser me aventurar pelos estádios da vida.

E com a moda? Como nasceu essa paixão?
Vem desde quando me entendo como gente. Minha mãe contava que no auge dos meus 4 anos já escolhia minhas roupas, e assim seguiu por toda a infância e adolescência. Sempre tive muita segurança ao me vestir, e sempre vejo a roupa como forma de informação. Não é sobre tendência, é sobre usar uma peça que te representa, que diz sobre você, que fortalece sua imagem e a sua melhor versão.

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Como surgiu a ideia de unir as duas coisas?
Em uma fase de mudanças na minha vida, me vi deixando uma profissão já consolidada pra seguir esse meu amor pela Moda. Foi logo após a morte do meu pai, que sempre me encorajava a seguir meus sonhos.

Desde o momento que eu decidi mudar, martelava na minha cabeça a ideia de juntar a moda com o futebol, como ferramentas de empoderamento. Isso lá em 2010, onde ninguém falava muito disso ainda. Trabalhei durante 5 anos num conceituado escritório de moda, e tive essa abertura para me aventurar nesse mix dos dois mundos. Escrevia para algumas revistas, participava de alguns eventos esportivos, entrevistas, etc. Mas era algo que ninguém falava, e continuei na busca por esse link. Foi aí que me deram a Minas de Estádio.

Quando eu falo “deram”, foi porque ela veio como intuição, quase que como um sopro no meu ouvido, num dia de fevereiro, quando estava em frente ao CT do Palmeiras, apoiando o time no Paulista de 2018. A Minas de Estádio já existia como movimento, onde eu ia pros jogos do Palmeiras e falava com mulheres e registrava um pouco do nosso lugar nesse ambiente. Mas naquele dia de fevereiro ela se tornou marca. Mas uma marca que vai além de camiseta, pois empoderar e encorajar mulheres é o DNA do projeto.

Por que você acredita que o futebol pode ser usado como instrumento de empoderamento feminino?
A mulher sempre teve que provar para que veio, e no futebol não é diferente. Desbravar algo que não foi “feito pra nós” sempre foi um incentivo de vida pra mim. É como provar pra nós mesmas que a gente consegue, a gente pode, a gente é.

E como roupas podem ser vistas como forma de inclusão?
Roupas têm que nos representar. E como profissional de moda, em todos os meus trabalhos, tento inspirar reconexão, aceitação, representatividade e responsabilidade. A Moda precisa ser vista como ferramenta de autoconhecimento, e assim a gente se entende e encontra nossa melhor versão, sem regras, sem imposições.

Por que você viu a necessidade de criar roupas que pudessem ser opção para ir ao estádio? Você notou que existia uma carência a respeito disso?
Eu quero “abraçar” o máximo de minas possíveis como marca. Eu quero representar vários tipos de mulheres; seja quem vai pro estádio ou quem assiste de casa… quem prefere camiseta e quem prefere regata. Quero uma peça que represente o amor pelo time, mas que também me represente, não só ali naquele momento.

Você acredita que essa questão das roupas é um problema para as mulheres nos estádios?
É uma realidade que as mulheres consomem o futebol, mas apenas recentemente os times entenderam como nicho. Para você ter uma ideia, as jogadoras usavam modelagem do masculino pra jogar até pouco tempo atrás. E isso refletia na arquibancada. Eu vejo uma evolução nisso, pois hoje você encontra camisetas em diversas modelagens, pra todos os gostos. Mas ainda estamos começando.
Olhando de outra ótica, infelizmente ainda somos julgadas pela roupa que usamos, e no estádio não seria diferente. Mas o importante pra burlar qualquer julgamento é reconhecendo que ali também é um lugar nosso

Você que é frequentadora assídua de estádios, já passou por alguma situação constrangedora com relação a roupas?
Olhares desconcertantes, sussurros nos ouvidos e algumas investidas desrespeitosas, mas nesses momentos acredito que a roupa não foi um incentivo. Foi apenas um comportamento enraizado de alguns caras que invadem e desrespeitam. Eu não me calo, e nem me calei em nenhum momento que me senti lesada, seja no estádio, ou em qualquer lugar. Vão aprender na marra como respeitar, seja usando um decote ou um moletom, vão ter que respeitar.

Além das roupas o Minas de Estádio promove encontros de mulheres, qual a proposta desses momentos?
A Minas surgia com a ideia de unir, de fortalecer, e o encontro é o gatilho pra isso… às vezes preciso lembrar que vendo camiseta (risos).
E nele a gente une mulheres de todos os times, para beber, comer, dançar e conversar… conversar sobre nosso papel e nosso lugar no futebol.

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O projeto tem conseguido alcançar o objetivo?
Estamos no começo, mas cada vez mais sinto que estou no caminho…fazer e pensar o futebol de uma maneira ampla, pra times diferentes, mudou até minha forma de ver a rivalidade. Eu tenho mil ideias, e aos poucos quero colocá-las em prática com um único objetivo: provar que o mundo é nosso, e que a gente vai estar em qualquer lugar que quisermos sim.

Como tem sido a aceitação do público?
Eu escuto mil elogios, palavras de incentivo, novas ideias, então sinto que estou fortalecendo o conceito todo. E é muito legal porque recebo mensagens de mulheres que falam que se sentem acolhidas e fortalecidas com a ideia. Inclusive teve uma ocasião que deu quentinho no coração: uma seguidora palmeirense veio agradecer, falando que ela estava ali sozinha no jogo, porque ela sabia que teriam outras mulheres na arquibancada com o mesmo desejo que ela.

As frases das blusas são pensadas por você? Como elas são escolhidas?
São todas da minha cabeça… Elas têm muito da realidade de uma mulher que respira o futebol. A ideia é sempre fazer com que a mina se sinta representada ali. E está dando certo.

A marca contribui para o reconhecimento do público feminino como consumidor de futebol?
Acredito que o novo processo de compra tem que vir acompanhado de um motivo, de uma causa, de um incentivo, de uma informação… e é isso que eu faço a cada postagem, a cada encontro, a cada conversa. Exaltar o poder feminino nesse meio é um dos nossos objetivos.

De que forma a marca burla a rivalidade entre os times?
Através das cores e dos encontros. Cores porque a mesma camiseta alvinegra serve pra mina corintiana, pra santista, ou pra qualquer outro time que é representado pelo preto e branco, por exemplo.
E os encontros porque ali a gente compartilha da mesma ideia, da mesma força, da união e com o mesmo objetivo. E por incrível que pareça, a rivalidade acaba ali, naquele momento.

Onde a marca pretende chegar?
Nossa, eu penso muito alto. Eu quero chegar no dia em que os encontros superem vendas. Que seja um sinônimo de inspiração, de reflexão, de resgate e mais um canal de fortalecimento do futebol feminino… da mulher no futebol. Seja como consumidora ou como formadora.