Durante transmissão do jogo da Copa do Mundo 2023, entre Austrália e Irlanda, o narrador David Basheer fez um comentário machista sobre o fato de a jogadora Katrina Gorry ser mãe

Por Sarah Américo e Morgana Américo

Conforme dito em 1990, pela filósofa e teórica estadunidense Judith Butler, ‘se alguém é uma mulher, esse alguém não é só isso’.

Ser mulher é um grande desafio no mundo, pois há barreiras a serem vencidas a todo momento. Baixa inserção no mercado de trabalho, salários e cargos inferiores, assédio, feminicídio, desrespeito e outros tantos aspectos compõem essa lista de desafios. No esporte, não é diferente. Mesmo que os números da Copa do Mundo Feminina 2023 provem que o futebol feminino é apreciado pelas pessoas e gera audiência, ainda são frequentes os comentários machistas a respeito das jogadoras. 

São discursos sexistas relacionados ao corpo, falas com duplo sentido e, até mesmo, posicionamentos sobre a função da mulher, que ainda é associada, apenas, ao trabalho doméstico e à gestação. A propósito, a maternidade é uma tema que, constantemente, gera incômodo na sociedade, já que muitos acreditam que mãe não pode ser jogadora e que é preciso escolher uma ou outra função, decisão que, por vezes, leva atletas a abandonarem sua carreira para viver a experiência da maternidade. 

Contudo, existem aquelas que conseguem provar que é possível ter as duas coisas. Só no Mundial que está sendo disputado na Austrália e na Nova Zelândia, dez jogadoras são mães, sendo uma delas Tamires, da Seleção Brasileira. Ela é a única do Brasil que já viveu a experiência da maternidade. O número de mães é baixo, mas significativo o suficiente para mostrar que dá para conciliar a maternidade com a profissão de jogadora. Confira a lista de atletas que são mamães: 

  • Alex Morgan (EUA) – 1 filha  
  • Crystal Dunn (EUA) – 1 filho  
  • Julie Ertz (EUA) – 1 filho  
  • Tamires (Brasil) – 1 filho  
  • Amel Majri (França) – 1 filho  
  • Katrina Gorry (Austrália) – 1 filha  
  • Elin Rubensson (Suécia) – 1 filho  
  • Konya Plummer (Jamaica) – 1 filho  
  • Cheyna Matthews (Jamaica) – 3 filhos (2019, 2022) – dois deles nasceram próximos às Copas do Mundo


Mesmo que essas atletas de alto rendimento mostrem ser possível fazer essa conciliação, e que ser jogadora é uma profissão como outra qualquer, esse equilíbrio gera incômodo. Durante a Copa, no jogo entre Austrália e Irlanda, o narrador australiano David Basheer foi, duramente, criticado por fazer comentários machistas sobre a jogadora Katrina Gorry. Ele disse, durante a transmissão, que a “maternidade não enfraqueceu o espírito competitivo” da atleta.

A fala de Basheer gerou uma série de comentários, entre os internautas, que questionaram se a mesma coisa seria falada para um homem pai. Vale lembrar que, entre os convocados da Seleção Masculina do Brasil para a Copa do Catar,  20 eram pais (apenas seis ainda não tinham filhos). Somam-se 35 herdeiros, incluindo os primeiros filhos do zagueiro Eder Militão e do Fabinho, que, na época, não tinham nascido, além do segundo de Neymar, que anunciou, recentemente, que será pai, mais uma vez. A gravidez é fruto do seu relacionamento com Bruna Biancardi.

Mas o que explica esse desconforto com atletas mulheres e mães? Talvez, a explicação esteja no fato de as mulheres terem sido proibidas de praticar o esporte. Em 1941, existia uma lei que dizia que, às mulheres, não se permitiria a prática de desporto incompatíveis com as condições de sua natureza, ou seja, esporte e mulheres não combinavam, pois a corporalidade feminina era definida em função da suposta missão das mulheres como reprodutoras. Esse decreto só foi revogado em 1983, 42 anos depois.

Atletas e mães: o que interfere?

Esse tempo em que as mulheres foram impossibilitadas de praticar esportes deixou sequelas na história do esporte feminino, e muitas delas estão presentes até hoje, como é o caso do baixo incentivo às modalidades femininas e da falta de patrocinadores e de visibilidade midiática. Não podemos negar que, nos últimos tempos, houve mudanças, mas ainda há muito caminho a ser percorrido até que haja uma equidade se comparadas com as modalidades masculinas. Durante anos, jogadoras perderam patrocínio e foram, inclusive, dispensadas de seus times porque engravidaram. Confira três casos famosos:

Tandara Caixeta, atleta brasileira de vôlei, processou o antigo time em que jogava, Praia Clube, pelo não cumprimento de direitos ligados à maternidade. Segundo reportagem da Gazeta Esportiva, em 2014, quando engravidou, a atleta passou a receber 0,5% do salário previsto em contrato. Isso porque o Praia Clube não renovou o contrato de imagem de Tandara que correspondia a 99,5% dos vencimentos mensais da jogadora. Ou seja, após a grávidez, o salário da atleta despencou. v\

Sydney Leroux, futebolista que, atualmente, joga no Angel City FC, nos Estados Unidos. Em 2019, quando estava no Orlando Pride, ela iniciou a pré-temporada grávida de cinco meses e meio. Mesmo sem estar competindo, a jogadora foi alvo de críticas, na internet, por dar continuidade à sua profissão mesmo gestante. Três meses após a gravidez, Sidney retornou aos campos e, em entrevista a ABC News, em 2019, a atleta declarou que “é muito importante ver que a vida não para, e você pode ter uma família e, também, ter uma carreira”.

Allyson Felix, a corredora norte-americana, também ganhou destaque na mídia por sua gestação. A  sua ex-patrocinadora, a marca esportiva Nike, quis reduzir, em 70%, seu salário, só pelo fato de ela ter engravidado. Em entrevista ao jornal “The New York Times”, em 2019, a atleta acusou a marca de discriminar competidoras que tiram licença maternidade e reduzir os valores de contratos após darem à luz.

Além dos nove meses de gravidez, as atletas precisam enfrentar a resistência dos clubes, as exigências de alto rendimento da modalidade e a adaptabilidade dos parceiros, caso deseje realizar o sonho de constituir uma família sem abrir mão da carreira. Tamires foi mãe aos 21 anos, quando ainda namorava César, também jogador de futebol. Ela pensou que o sonho de ser atleta tinha terminado naquele momento, depois de passagens pelo Juventus, Santos, Chalotte Eagles dos Estados Unidos, e Ferroviária. 

 “Foi um baque, não esperava. Achei que o futebol tinha acabado para mim. Ouvi de pessoas que tinha acabado. Não tinha maturidade para lidar com a situação”, relatou à CBF TV, antes do Mundial de 2019. Alex Morgan, dos Estados Unidos, também falou sobre a maternidade no futebol. Em entrevista à revista People, ela disse que a maternidade lhe tornou uma melhor jogadora, porque a mudança fez com que ela adaptasse seus estilos de jogo e se tornasse uma atleta mais equilibrada. “Não me senti super rápida imediatamente. Eu já tinha adaptado meu jogo de achar espaços sem ter que usar minha velocidade. Quando eu voltei a ganhar mais agilidade, consegui unir as duas habilidades, um pouco mais, no campo. Sinto que estou me encontrando mais bem posicionada e convertendo boas chances em gol com mais frequência do que nunca”, disse.

Como a FIFA trata a questão da maternidade?


Desde 2021, a Fifa impôs, aos seus 211 países-membros, uma série de regras relacionadas a isso. Por exemplo: uma licença-maternidade de, pelo menos, 14 semanas, das quais oito serão após o nascimento, assim como a proibição de demissão das atletas. A entidade, também, obriga a remuneração em, pelo meno, dois terços do salário contratual. As regras também englobam cuidados físicos e médicos adequados, além de amamentação em locais adaptados nos clubes. O desrespeito à medida imposta pela entidade, há dois anos, fez com que o Lyon, da França, fosse condenado a pagar as diferenças salariais que o clube se negou a custear em favor da islandesa Sara Björk, durante parte do seu período gestacional e da sua licença maternidade. Após a confirmação da gestação, o Lyon se negou a manter o pagamento integral da jogadora, se limitando a disponibilizar apenas uma parte do valor salarial a que a jogadora tinha direito.

Texto produzido em cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube