“⁠O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças” (Carolina Maria de Jesus)

Momento de apresentação do filme “Alan do Rap” com Alan fazendo menção às invasões de palco. Foto: Reprodução

Por Lenine Guevara

A capacidade de aliança com as personalidades mais reais da sociedade precarizada talvez seja uma marca dos irmãos Lisboa ao fazer vida-documento. A estreia do documentário “Alan do Rap” nesse ano me deu um impacto similar a “Estamira” de Marcos Prado, mas essa comparação é apenas para dar ao leitor uma entrada no que o filme representa: uma vivência expandida com uma personalidade singular de um universo interno riquíssimo, que também foi forjada na miserabilidade e na completa falta de tudo. Como diria Alan do Rap “Abram os olhos à sociedade, Invadam sim os palcos. Eu vou subir no microfone e questionar a situação minha e do meu povo”.

Sim, Alan do Rap ficou conhecido como invasor de palcos de artistas renomados como Mano Brown e Alpha Blondy. Sua ocupação deflagrou a voz das favelas e a consciência dos espaços de visibilidade, com a força que só alguém que passa toda sorte de infortúnio, pode representar. “Nada sobre nós sem nós”, o lema das minorias sociais não poderia ser melhor representado pela postura e consciência político-social de Alan do Rap.

Letra da música “Irmão Preto, Irmão Branco”, que Alan do Rap e Diego Lisboa
cantaram no show do Mano Brown. Foto: Reprodução

Alan parece estar afinado com as mentes brilhantes forjadas na indecência da fome que segue a marca registrada do país. O documentário conta a trajetória desse artista subalternizado de Salvador-BA entre os anos de 2002 a 2012, em um período de filmagens que o aproximou de Diego e Daniel Lisboa.

Uma trajetória que nos apresenta a diversos Alans na forma crua como o documentário foi montado, com recursos de elipses que compõe uma complexa colcha de retalhos, marcando três momentos expressivos da narrativa ruidosa: a introdução de Alan em seu barraco, com sua vida como catador de resíduos, pai de filho amado, de pé machucado, onde o conhecemos como poeta freestyle até seu testemunho sobre as invasões em palcos de artistas renomados, entrecortados por registros de imagens dos shows; o segundo momento é marcado pela prisão de Alan e o acompanhamento de registros que narram de maneira nada linear, os quatro anos de cárcere; o terceiro momento mostra uma renovação de esperanças com o retorno de Alan aos shows de Salvador, suas famosas invasões de palco e uma participação especial sua com o próprio Diego Lisboa no show do Mano Brown. Tenho certa que assim como eu, os irmãos Lisboa gostariam de ter finalizado o documentário com esse desfecho, mas a linha tênue com a morte, que Alan escancara de maneira paradoxalmente esperançosa em seus testemunhos, selam a inevitabilidade de suas denúncias de massacre contra o povo negro e favelado no Brasil.

Inevitabilidade, pois mesmo resistindo à criminalidade e sendo arauto das denúncias mais límpidas sobre as injustiças sociais, o ciclo de violências do sistema policial nas favelas, não largaram Alan. Simplesmente não houve saída para se des “envolver” como artista, como poeta. Mais de uma vez Alan, por ter se “envolvido” no crime, foi alvo de assaltos policiais. O desfecho, faço o pedido que descubram ao assistir a este documento complexo e íntimo que deflagra uma amizade forte entre os Lisboa e Alan.

Na esquerda, imagem do encontro de Alan do Rap e Mano Brown antes do show em Salvador. Na direita, imagem da primeira invasão do show de Alpha Blondy por Alan do Rap, tomando a plateia ao delírio com o hit “Favela”. Fotos: Reprodução