Por Dione Afonso

Cineasta vencedor do Oscar por “A Lista de Schindler” (1993) e “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), Steven Spielberg (1946, com 76 anos), após o reboot de “Amor, Sublime Amor” (2021), também indicado ao Oscar, retorna às telonas com uma semi-autobiografia em “Os Fabelmans”. Spielberg respira cinema e seu coração é totalmente entregue e rendido à arte. Com “Os Fabelmans”, o cinema é humanizado e a arte elevada à mais simplicidade, honestidade e amor que se pode elevar-se. É emocionante ao ver o pequeno Sammy Fabelman (que metaforiza o pequeno Spielberg) se encantando com a arte fílmica de uma forma muito honesta e, assombrado com o que assiste, decide, por si só, superar o trauma e daí começa sua história de amor pelo cinema e pela arte.

As gerações das décadas de 1990 e de 2000 se familiarizaram com o cineasta com os blockbusters da franquia “Indiana Jones” e “Jurassic Park”, e claro, sem deixar de mencionar “Tubarão” (1975), um dos filmes mais consagrados do diretor. O que chega a nós neste ano pelas salas de cinema de todo mundo pode desbancar este sucesso e a história de sua família pode ser considerada o cinema em sua essência, mais puro e verdadeiro já feito na história da Sétima Arte.

Spielberg nos dá uma aula de cinema

O jovem e carismático ator Gariel LaBelle encarna Sammy (Spielberg jovem) se descobrindo amante da arte e com uma câmera na mão se dispõe a filmar, narrar histórias e começa a descobrir técnicas de imagem, de edição e fotografia. Sammy descortina o que, muitas vezes o cinema hollywoodiano perde: a delicadeza e a relevância de um detalhe pequeno e simples, mas que é capaz de contar uma grande história. A cada descoberta, os olhos de Sammy brilhavam como se ali estivesse todo o sentido de sua vida. E de fato, estava! Spielberg se apaixonou pelo cinema. Descobriu a beleza da arte, ao mesmo tempo, também, em que descobre que ela pode não favorecer ou encantar a todos. A interpretação e o foco que a câmera dá a determinada história pode não corresponder à realidade.

LaBelle contracena com Michelle Williams e Paul Dano, seus pais. E, Spielberg não se preocupa em só contar a história do cinema, mas ele trata de humanizar também a história da família. O cineasta soube colocar na tela as fraquezas humanas e as crises conjugais de uma forma muito madura, simples, comovente e que, ao mesmo tempo, despedaça-nos e nos deixa sentidos e tristes. O jovem Sammy e suas irmãs assistem a separação dos pais e percebem que o ser humano é constituído de falhas e quando um adulto erra, é preciso lidar com as consequências de forma madura e bem dialogada. Williams e Dano dão à narrativa o que é essencial para que a família Fabelmans seja o mais verdadeira possível: leveza e verdade. O cinema de Spielberg é verdadeiro e muito mais real do que se imagina.

As influências de John Ford

Quando o ator David Lynch surge nos últimos minutos de filme, o coração da gente começa a acelerar. Lynch, em menos de 2 minutos de tela emociona a todos com sua caracterização do cineasta John Ford (1894 – 1973). Ford é a grande inspiração de Spielberg. Os clássicos “Depois do Vendaval” (1952); “O Homem Que Matou o Facínora” (1962); “O Delator” (1935); “A Conquista do Oeste” (1962); “A Mocidade de Lincoln” (1939) são somente alguns que são referenciados em “Os Fabelmans”. É uma verdadeira aula de Ford para Sammy, de Spielberg para o cinema e do cinema para todos nós. São se trata apenas de filmar cenas, mas é sobre narrar verdadeiras histórias que inspiram e a história dos Fabelmans é inspiradora e respeitosa. Não é só sobre a história do cinema americano, mas é a história de um artista que revolucionou o cinema do mundo todo.

Spielberg, logicamente assina o roteiro da obra. O que chama a atenção nessa narrativa é que os diálogos não possuem nenhum segredo grandioso e nenhuma conversa que nos prende, mas é a simplicidade de cada conversa, discussão, e as cenas em que Sammy dirige seus amigos em seus curtas-metragens que nos encanta e nos convence. Acho que uma classificação que não cabe muito em Spielberg é a nostalgia. Não que ele não faça, mas ele não se prende a ela, não faz dela um produto de venda e de marketing (comumente explorado por Hollywood e estúdios que se importam mais com o lucro que com a arte). “Os Fabelmans” é nostálgico, mas em doses homeopáticas e, não muito explícitas. Portanto, a homenagem a Ford acontece sem muito alarde e vanglorias, mas é recheada de admiração, respeito e gratidão de Steven Spielberg a John Ford por tudo o que ele fez para a Sétima Arte e para ele, naquela época, um jovem sonhador apaixonado pelo cinema.

Steven Spielberg é um patrimônio cultural do Cinema

Spielberg acredita que o cinema, para ser cinema de verdade, precisa se preocupar em ser o mais verídico possível. O cinema não pode, nunca, tornar-se instrumento de mentiras e de falseamento da realidade. Ele deve, acima de tudo, contribuir com a organização social; com a promoção e a construção de uma sociedade mais organizada e igualitária. Vemos isso em diversas cenas. O tio de Sammy, numa cena, diz que ele terá uma encruzilhada maldosa para se decidir: entre o seu grande amor pela arte e o respeito pela família. No fundo, há aí aquele discurso que separa vida profissional de vida familiar e pessoal. Mais pro fim, quando Sammy, morando com o pai, tem uma crise de pânico, seu pai revela que cada um de nós precisa lutar pelo o que acredita, pelos seus sonhos.

O cinema não foi um hobby para Spielberg, mas foi um grande sonho. Sonho que ele ainda continua construindo a cada obra, a cada produção, a cada história que ele em o prazer de levar para as telonas. Num mundo pós-covid, Spielberg agradece a cada pessoa que se desgrudou um pouco do seu mundinho, rompeu as fronteiras de sua ilha confortável, desligou um pouquinho os streamings e foi se aventurar em viver uma experiência rica e compartilhada nas salas dos cinemas. Ir ao cinema é uma experiência social e única. Você pode ir ao cinema todos os dias, e, mesmo se você assistisse ao mesmo filme, cada vez seria como se você assistisse a um novo filme, pois a experiência humana compartilhada ali seria diferente e é isso que alimenta e fortalece a arte.