Ilustração Zoë van Dijk

Por Vanessa Santos e Gustavo Guterman

“Glamour é um termo comumente usado para caracterizar uma mulher muito elegante e charmosa, normalmente pessoas que fazem parte das classes sociais mais altas. É uma palavra de origem escocesa, pois nos tempos medievais, somente poucos clérigos sabiam ler e escrever e tinham conhecimento de gramática, e para todos os outros, a gramática era associada a práticas ocultas e misteriosas.” (fonte)

E assim a contemporaneidade glamourizou às avessas, a cozinha. Pois quem tem o conhecimento “gramatical” e domina as “práticas ocultas e misteriosas” das panelas, é quem menos se beneficia.

Nas capas de revistas, livros e programas de televisão é fácil encontrar imagens de pratos incríveis ou chefes sorridentes. E entre sorrisos e aplausos, chegam ao final do mês nadando nas águas agitadas das folhas de pagamentos e prazos de fornecedores.

Alguns então, encontraram justamente nestes espaços midiáticos, o caminho para equilibrar as contas e fazer possível se viver da gastronomia. E qual é o problema de representar dignamente toda uma categoria profissional, ou os produtores e regiões que perfazem uma cultura alimentar (fomentando o consumo e sustento destes)? Absolutamente nenhum, penso eu.

Mas sabemos que não é assim que a banda toca. Poucos, nestes espaços, falam de cultura alimentar e raros são aqueles que entendem que antes de chefes, são cozinheiros(as) e representam todo um nicho profissional sem muitos respaldos. Uma categoria que ainda não possui plano de carreira minimamente definido, ou qualquer especifidade jurídica que os abalize tanto nas questões empregatícias (vínculos trabalhistas, ambiente de trabalho), quanto nas questões que envolvem a prática da profissão (como as doenças relativas ao ofício em si, por exemplo). Isso sem falar na questão salarial.

Salários

A cozinha paga mal. Apesar da gastronomia movimentar quase 3% do PIB, se você é um cozinheiro(a) profissional (mesmo trabalhando nos melhores restaurantes das grandes capitais nacionais), você ganha mal. Comparativamente falando, com profissionais de mesma capacidade técnica (nas suas respectivas áreas); a cozinha hoje é um dos ambientes mais complexos para se ter um ganho financeiro, baseado na sua capacidade de produção técnica intelectual. Ou você acha que cozinheiro(a) não estuda? Não pesquisa exaustivamente sobre tudo que envolve o complexo ato de cozinhar?

Se você fez uma faculdade particular de gastronomia, seu primeiro salário é em média de 30% a 40% menor do que a mensalidade que você pagou durante seus anos de formação. Como não há nenhuma organização profissional que brigue por sua categoria e os donos de negócios gastronômicos (que em geral estão endividados por má gestão ou tributações impagáveis ou os dois juntos), se tornam gestores fadados a um provável fracasso. Advinha quem pagará o pato?

Entendo que é necessário mudar paradigmas.” Não há como pagar melhores salários, pois 98% das empresas da área de alimentação, são pequenas empresas.” – Diria minha consciência. Mas por que pequenas empresas de consultorias financeiras despontam no mercado? Pequenos escritórios de advocacia, publicitários, startups em geral se transformam em empresas de sucesso e nós continuamos achando que uma operação de serviço está fadada ao mediano? Por que alguns chefes (nacionais e internacionais) ficam ricos e seus cozinheiros não?

É o modelo de negócio em si? São as incontáveis variáveis, são as inúmeras dependências (fornecedores, mão de obra, economia…)? Ok, mesmo assim, se for tudo isso, por que não pensar em outras formas? Se discutir isso profundamente, ao invés de continuar propagando a cozinha como uma religião e não um negócio possível?

E você acha que com o tempo de carreira, as coisas melhoram substancialmente? Veja aqui as médias de salário dos cargos de chefia da categoria e tire suas próprias conclusões.

Diante desta realidade, há um romantismo permissivo sobre o caos e o desrespeito profissional. Um discurso darwinista perverso que diz que só o mais adaptado sobrevive ao meio. E para isso inimagináveis horas de trabalho, aliadas a condições rotineiras absurdas ganham um ar heroico e romântico dos bravos cozinheiros e cozinheiras.

Condições de trabalho

Particularmente não tenho orgulho da insônia crônica que me acompanha há mais de uma década, nem a dor alucinante na coluna, que no momento que escrevo essas linhas, me ataca. São resquícios de 16 anos de cozinha profissional. E as fotos abaixo são retratos que tenho como lembranças desses anos. E não há como considerar algo normal dentro de um trabalho, esses tipos de cena.

Foto: Divulgação

Segundo a Norma Reguladora n° 24 do Ministério do Trabalho , o espaço que a empresa deve destinar aos funcionários se alimentarem dependerá da quantidade de trabalhadores, obedecendo a regras específicas, previstas na NR 24. Deverão ser asseguradas aos trabalhadores de estabelecimentos com menos de 30 funcionários, condições suficientes de conforto para as refeições em local que atenda aos requisitos de limpeza, arejamento, iluminação e fornecimento de água potável. Ainda, nessas empresas com menos de 30 trabalhadores, é possível, que as refeições sejam feitas no próprio local de trabalho. Nesse caso, porém, é preciso que sejam seguidas as seguintes condições: a) respeitar dispositivos legais relativos à segurança e medicina do trabalho; b) haver interrupção das atividades do estabelecimento, nos períodos destinados às refeições e c) não se tratar de atividades insalubres, perigosas ou incompatíveis com o asseio corporal.

Saúde física e mental

Cena do curta inglês Boiling, que retrata um dia infernal na cozinha de um restaurante. Foto: divulgação

A profissão de cozinheiro é uma das mais estressantes do mundo. Segundo a revista Metrópolis, o governo dos Estados Unidos já divulgou dados alarmantes sobre a atividade: é a quinta mais propensa ao alcoolismo, com 77% de chance de desenvolver a doença quando comparada a outras carreiras; exibe o título de atividade com maior número de usuários de outras drogas (19,1%) e está entre as 20 profissões com índice mais alto de suicídio. O resultado: diversos profissionais da cozinha acabam desenvolvendo transtornos mentais.

Outro problema são as doenças atreladas a profissão; primeiramente os riscos de acidentes, que são bem óbvios. Diariamente lidamos com facas afiadas, objetos perfurocortantes, superfícies quentes, gases, vapores e óleo fervendo. Além disso, durante a higienização da cozinha usam-se produtos com alta concentração de cloro e corrosivos. A possibilidade de imprevisto por mau uso ocorrer é muito alta. Não há um cozinheiro de carreira que não tenha várias cicatrizes e histórias para contar.

Temos ainda a alteração brusca de temperaturas pela qual o profissional passa. Por exemplo, sair da boca do fogão para dentro de uma câmara congelada ou resfriada, ou abrir um refrigerador, são choques térmicos que podem causar queda da resistência e desenvolvimento de diversas doenças oportunistas. A permanência em câmaras congeladas (fato comum quando é feito controle de estoque ou organização dela) também ocasiona diversos problemas, que vão desde resfriados, cefaleias, até frostbite (congelamento e consequente morte de pele e tecidos).

As cozinhas têm seus equipamentos com alturas e tamanhos gabaritados, que devem atender diversas estaturas, o que leva as pessoas mais altas a se abaixarem muito e as mais baixas a erguerem demais seus braços para trabalhar. Os problemas posturais surgem por ser um ofício que exige longas jornadas de pé na bancada trabalhando, além de carregar insumos pesados, erguer panelas cheias e movimentos repetitivos com os pulsos ao cortar alimentos.

Apesar de todos esses perigos fazerem parte da rotina do trabalhador de cozinha, não são reconhecidos a eles insalubridade ou periculosidade. Além da clara falta de conhecimento da sociedade sobre o tema, ainda há a irresponsável frase que ouvimos com frequência daqueles que em geral não querem ser parte da transformação e sim propagadores do silêncio diante destas situações: “Cozinha é para quem ama, não é para quem quer”. E você acha que acabou? Não, a gastronomia está longe de ser somente uma área de trabalho prática.

Escola

Hoje alunos e alunas de gastronomia dos cursos tecnológicos e bacharelados são responsáveis por uma infinidade de trabalhos acadêmicos – TCC (Trabalhos de Conclusão de Curso), que possibilitam discussões e evoluções. Estudos que versam sobre a importância da gastronomia como patrimônio cultural, outros que abordam a importância de uma gastronomia sustentável, ou ainda aqueles que descrevem a importância da gastronomia hospitalar para o no auxílio à redução dos índices de desnutrição entre pacientes… A maioria das faculdades do Brasil são de cursos tecnológicos (de 2 a 2,5 ano de curso) e isso é pouco para o assunto “gastronomia”. Grande parte destes cursos são particulares, e como o ensino privado precisa de lucro para sobreviver, entramos em uma matemática perversa. Uma equação complexa de resolver: cursos caros X cursos longos X assunto longo X desrespeito a profissão.

Tudo isso demonstra como a Gastronomia enquanto área científica tem uma importância significativa para a construção de uma sociedade. Não esqueçamos que foi uma cozinheira chamada Roberta Sudbrack (aquela que não faz propaganda de grandes marcas, ou participa de reality) quem provocou a mudança de uma lei federal que hoje permite o comércio nacional de produtos que até então não podiam ser vendidos fora do seu estado de origem. É importante termos em mente que foi uma outra cozinheira chamada Janaína Rueda, quem treinou e construiu ao lado de duas mil merendeiras em São Paulo, uma melhor alimentação para alunos e alunas da rede estadual de ensino.

Miopia

Mesmo assim, ainda há quem não acredite na força deste movimento chamado GASTRONOMIA BRASILEIRA. Há quem faça pouco de professores, professoras, alunos e alunas e de toda uma infraestrutura que está se propondo a discutir e transformar a realidade não só da cozinha profissional deste país, mas da sociedade como todo. Pego por exemplo, a fala do sociólogo paulista Carlos Alberto Dória no II Simpósio Internacional de Pesquisa em Alimentação na USP.

Veja a fala do sociólogo neste link

Dória hoje tem grande parte dos seus estudos escritos, principalmente em livros, alocados nas estantes de gastronomia das livrarias Brasil afora. E se utiliza desde artifício para vender suas ideias. Inclusive um dos primeiros livros de sua autoria que tive acesso, foi o importante, COM UNHAS, DENTES E CUCA, que ele divide com seu então amigo Alex Atala. Mas não se enganem, ele não está sozinho no time de profissionais que tem a gastronomia como sua área de atuação, mas despreza a importância da formação acadêmica específica e suas já citadas contribuições para a sociedade. Neste bojo se encontram cozinheiros profissionais com espaço na mídia, jornalistas gastronômicos e até mesmo professores da área que, pasmem, consideram a gastronomia somente uma área de entretenimento e de estética.

Hoje são justamente coletivos de professores e de alunos, dentro dos espaços da educação que discutem de forma aprofundada soluções para os problemas dos práticos da profissão (que vão desde a legalidade de certas atitudes do mercado de trabalho e suas consequências, até as possibilidades de melhorias para a categoria), além das possibilidades futuras da alimentação de todo um país.

E a resposta dos professores(as), alunos(as) e cozinheiros(as) a estes que duvidam da importância da formação acadêmica, está sendo dada em trabalhos científicos e na transformação do mercado profissional. E essa revolução está começando dentro das FACULDADES DE GASTRONOMIA.

Mesmo diante do desmonte da educação, com os dirigentes de faculdades particulares lançando uso das novas leis trabalhistas para demitir professores em massa, os ataques constantes do MEC as instituições públicas de ensino, até a absurda transformação de cursos de gastronomia presenciais em cursos EaD. – Estas duas ações motivadas por razões espúrias, como você pode ler neste link.- alunos (as) e professores (as) tem dado passos importantes para evolução da gastronomia nacional.

São ataques frontais à formação profissional e aos profissionais atuantes já registrada em falas de parlamentares que foram contra projetos de lei que tentaram regulamentar e evoluir com nosso ofício. Veja aqui a fala do parlamentar. Tal fala deixa claro que quem discute a gastronomia neste país não tem a menor ideia do que é a gastronomia.

Futuro

Por isso penso que a reestruturação da gastronomia enquanto ofício prático, científico e cultural perpassa uma discussão entre pares, pois necessita de uma profunda organização para nos estabelecermos e avançarmos de forma contundente e assertiva. Sem meios termos.

Somos gigantes e vitais para a sociedade. Não somos somente o seu entretenimento. Nós, cozinheiros e cozinheiras, representamos dentro de nossas cozinhas uma gama de culturas! Somos quem financia o produtor rural de pequeno porte e faz possível seu ofício. Somos quem enfrenta a indústria de alimento, que trata seus consumidores como metas de venda a serem batidas, sem nenhuma responsabilidade alimentar ou as sequelas que os aditivos (para aumentar o tempo de prateleiras) ocasiona. Somos nós quem questionamos o veneno no seu prato e lutamos por uma agricultura mais justa para todos. Não se enganem. Não somos poucos e estamos gradativamente nos organizando e planejando dias melhores. Para todos.

Sobre os autores 

Sobre os autores

” Juntando o nosso tempo de trabalho dedicado à Gastronomia dá 45 anos! Cozinha, gestão, coordenação de cursos, sala de aula, fóruns, congressos, textos, blog, e muita, muita dedicação pela Gastronomia. Por ela, para ela, por respeito a todos que fazem parte, tentamos juntar a experiência dos dois para contribuir com a profissão que garante que as pessoas comam, que garante saúde, alegrias e sentimentos. – Vanessa Santos e Gustavo Guterman, professores de gastronomia e produtores de conteúdo no blog Comida RJ-CE.