O lobo-guará é uma das espécies do Cerrado ameaçadas de extinção (Bento Viana/WWF Brasil)

 

Bem conhecido dos brasileiros, o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) é um dos animais mais ameaçados pelo aumento do desmatamento e da conversão de matas nativas, principalmente, para a produção de soja e pecuária. O alerta é do WWF-Brasil, que junto a outros parceiros avaliou 486 espécies (183 aves, 101 anfíbios, 118 mamíferos e 84 lagartos e serpentes). A maior parte delas perdeu entre 25% e 65% da área original de distribuição, sendo as espécies do Cerrado as mais impactadas.

Do total de espécies analisadas, 136 são endêmicas, com mais de 95% da área de distribuição restrita aos biomas Amazônia e Cerrado. Nesse caso, as perdas médias foram de 17% para a Amazônia e 35% para o Cerrado, o que é preocupante já que estas espécies não ocorrem em nenhum outro local.

Nem mesmo as espécies conhecidas como “bandeiras” escapam ao impacto. É aí que se enquadra o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) e o tatu-canastra (Priodontes maximus), que tiveram mais da metade de seu habitat perdidos. Outras perderam quase 80%, como o gato-domato-pequeno (Leopardus guttulus) e o macaco-pregode-papo-amarelo (Sapajus cay).

Titulado “o impacto sobre espécies associadas a áreas úmidas e matas de galeria como anfíbios, por exemplo, indica que estamos impactando também os recursos hídricos”, o estudo foi feito com base na sobreposição das áreas de ocorrência de cada uma das espécies com as áreas alteradas.

Praticamente todas as espécies avaliadas apresentaram perda de área de distribuição (484 de 486) e, portanto, foram impactadas negativamente pela conversão de áreas naturais. Dentre os impactos figuram as perdas de área de: 68% para patomergulhão (Mergus octosetaceus), 70% para o galito (Alectrurus tricolor), 70% para a tiriba-do-Paranã (Pyrrhura pfrimeri), 72% para o lagarto-de-rabo-vermelho (Vanzosaura rubricauda) e 53% para o cervo (Blastocerus dichotomus).

Na prática, as áreas de ocorrência das espécies se sobrepõem, e quando o desmatamento ocorre em um local afeta várias espécies de uma vez só. A soma total da área de todas as espécies justapostas é de cerca de 530 milhões km2 – desse total, a área perdida no Cerrado foi de 88,1 milhões km2 e na Amazônia de 56,3 milhões km2 . Isto representa 51% do total das áreas de ocorrência no Cerrado, e 15% na Amazônia.

Porcentagem da soma total da distribuição das espécies avaliadas em cada bioma por: áreas remanescentes, perdas históricas até 2014 e perdas recentes (entre 2014 e 2019) / WWF

Ao avaliar a soma total de área de ocorrência perdida por grupo de espécies vemos que, proporcionalmente, as espécies de anfíbios foram as que mais acumularam perdas, com cerca de 43% do total da área de distribuição de 107 espécies convertidos em outros usos (Figura 4). Um exemplo é a rã flecha (Hyloxalus chlorocraspedus) que ocorre somente no município de Porto Walter, oeste do Acre, em uma área com altas taxas de conversão que causou a perda de 68% da área de ocorrência da espécie. Esta espécie pertence à família Dendrobatidae, que é conhecida por possuir representantes com peles ricas em moléculas com importância médica para o desenvolvimento de remédios como analgésicos.

Porcentagem da soma das áreas de distribuição das espécies de cada grupo que se encontram em remanescentes de vegetação nativa (em verde escuro) ou já foram convertidas em outro uso do solo (verde claro) / WWF

“Ao detalharmos o impacto do desmatamento para cada uma das espécies, vemos que as perdas variaram de menos de 1% até 93% da área de ocorrência da espécie. A maior parte das espécies perdeu entre 25% e 65% da área original de distribuição, sendo que para as espécies do Cerrado as perdas são maiores”, diz trecho do estudo.

Enquanto na Amazônia o maior número de espécies perdeu até 20% de sua área de distribuição original, no Cerrado a maior parte das espécies perdeu entre 30 e 70% de sua área de distribuição. Estas diferenças se explicam pelo fato do impacto na Amazônia ainda estar concentrado na borda sul e sudoeste e restrito a 17% do bioma, enquanto a conversão do Cerrado abrange todas as porções do bioma.

Número de espécies (por bioma) em cada faixa de perda de área de ocorrência / WWF

Ainda assim, praticamente metade das espécies da Amazônia avaliadas perdeu acima de 20% da área de ocorrência, com algumas chegando a marca de 70% a 90% de perda. A situação pode ser duplamente ruim para as espécies afetadas por perdas nos dois biomas.

Para a ave chororóde-goiás (Cercomacra ferdinandi), endêmica das áreas úmidas da bacia Araguaia-Tocantins, contar com uma área de ocorrência de 107,5 mil km2 no Cerrado e de 49,7 mil kim2 na Amazônia, não foi suficiente para afastá-la do risco de extinção. A alteração dos ciclos de inundação do rio por barragens e a substituição da vegetação nativa por pasto fizeram desaparecer 74% da área de ocorrência na Amazônia e 35% no Cerrado, configurando uma situação de perde e perde para espécie.

Para calcular o impacto da perda de habitat sobre a biodiversidade, os pesquisadores cruzaram mapas da distribuição de cada uma das espécies disponibilizados pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e dados de uso do solo para o Cerrado e para a Amazônia (do MapBiomas).

Cerrado na mira da destruição

O bioma é a savana com maior biodiversidade do planeta, mas também um dos mais ameaçados. Nos últimos dez anos, o Cerrado perdeu 6 milhões de hectares de vegetação nativa, sendo que cerca da metade disso (3,2 milhões de hectares) ocorreu no chamado “Matopiba”, que inclui partes dos estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

De acordo com gerente de Ciências do WWF-Brasil, Mariana Napolitano, “além de já ter perdido mais da metade da sua cobertura original, o que restou no Cerrado encontra-se bastante fragmentado e, em muitos casos, degradado pela ação intensa do homem, criação de gado, fogo recorrente, invasão de espécies exóticas, dentre outros”.

Segundo ela, é essencial que haja uma mudança de mentalidade das empresas e do governo: “a destruição do ecossistema é desnecessária, pois já existem áreas suficientes para a expansão do agronegócio – que inclusive, já está sendo prejudicado com quebras de safras constantes por conta da degradação ambiental”.

De acordo com Frederico Machado, Líder de Conversão Zero do WWF-Brasil, “o setor privado brasileiro já tem bons exemplos de como ampliar a produção, sem desmatar, e um deles é a Moratória da Soja na Amazônia. Acordo multissetorial que desde a sua assinatura promoveu drástica redução da destruição causada pela soja”. É necessário igual comprometimento do setor de soja com o Cerrado, assim como do maior esforço do setor pecuário em não desmatar.

Os dados do MapBiomas indicam que as principais atividades responsáveis pelo desmatamento e queima do Cerrado e da Amazônia são as produções de gado e soja. Até 2021, a agropecuária já ocupava mais de 40% do Cerrado (23,7% pastagem; 8,9% soja; 7,3% mosaico agricultura e pastagem), e 14% na Amazônia (13,5% pastagem; 1,2% soja) da área original destes biomas.

Sobre o estudo

estudo foi realizado pela consultoria Gondwana, sob coordenação do pesquisador Cristiano de Campos Nogueira, e tem o objetivo de apresentar as consequências da perda de vegetação nativa para a biodiversidade do Cerrado e da Amazônia brasileira, além de acrescentar evidências para propor políticas públicas e ações de conservação das espécies destes biomas.

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