Por Kaio Phelipe

Conversamos com Nelson Luiz de Carvalho, autor de O Terceiro Travesseiro, livro lançado em 1998 e considerado um clássico da literatura LGBTQIAPN+ nacional. A obra vendeu milhões de exemplares e foi o primeiro contato com uma narrativa LGBTQIAPN+ para diversos jovens que cresceram entre os anos 90 e 2000. Nelson Luiz de Carvalho contou ainda sobre Apartamento 41, seu segundo livro publicado em 2007, a repercussão do seu trabalho e seus próximos títulos.

  1. Como surgiu a ideia de escrever O Terceiro Travesseiro?

A história começou assim: eu trabalhava na Editora Globo e marcaram um almoço em um bar chamado Bar das Artes, em São Paulo. Esse bar não existe mais. Ainda tem a fachada, mas as portas fecharam. Cheguei atrasado nesse almoço e um grande amigo meu, também da Editora Globo, estava lá com o filho e tinham guardado um lugar para mim entre eles. Eu já havia encontrado o filho dele, o Marcus, em várias ocasiões, mas nunca tinha sido um contato muito profundo. O menino estava meio bêbado nesse dia e, na minha cabeça, eu me perguntava como que o Giorgio, o meu amigo, deixou o menino vir desse jeito. O Giorgio era um cara importante na empresa e aquela situação não pegava muito bem. Mas fiquei na minha. O menino começou a falar que eu poderia escrever a história dele e coisas do tipo e eu respondia que não ia escrever. Ele foi insistindo por um tempo, dizia que eu era escritor, que tinha saído uma matéria minha na Revista Veja. Fui respondendo que eu era jornalista e não escritor de livros. Bom, o moleque encheu tanto o saco, que o Giorgio me chamou em um canto e pediu para responder que eu ia escrever, só para ele ficar quieto. Como era véspera de Natal, falei para o Marcus esperar um tempo, deixar passar todas as festas, que depois a gente marcaria uma conversa. A história morreu aí e, em um belo dia, depois do Carnaval, adivinha quem me aparece na editora. O Marcus. Ele não estava alcoolizado e conseguimos ter uma conversa legal. Comecei a me interessar muito pelo livro, mas não sabia que seria uma história tão pesada.

  1. Quais foram os desafios de publicar uma narrativa LGBTQIAPN+ nos anos 90?

Na época, o livro poderia ter sido publicado na editora onde eu trabalhava. Mas, quando o Marcus começou a me contar a história e fui escrevendo também tenho muitas conversas nossas gravadas em fitas e tenho até um vídeo dele e do Renato, que foi gravado na pousada em Boiçucanga, que aparece no livro , comecei a gostar muito da história e não queria misturar o meu trabalho na editora e o meu trabalho como escritor, não queria que isso pegasse mal. Quando escrevi o livro, eu ainda estava casado com a Sueli. Ela sempre foi uma excelente pessoa e sempre soube que eu sou bissexual. É a primeira vez que estou falando isso de forma pública e clara. A Sueli disse que eu precisava publicar e, a cada capítulo que tinha sido escrito, eu escrevia sempre em casa, quando o Lucas ainda era pequeno, a Sueli me dava muitos toques, falava para alterar algumas partes e que outras tinham ficado confusas. Ela é uma pessoa para quem eu tenho que tirar muito o meu chapéu. Quando o livro ficou pronto foi quando veio o dilema de não misturar os trabalhos. Conversei com um diretor bem grande da Globo e contei sobre o livro. Lembro que usei a palavra “gay” e não “bissexual” para descrever o enredo para ele. Ele olhou para minha cara e perguntou “gay?”. Mas, como ele não tinha uma cabeça fechada, me pediu para ler o livro e, depois de duas semanas, me chamou na sala dele dizendo que tinha adorado. Ainda complementou falando “e olha que eu não sou gay”. Parece que, naquela época, as pessoas gostavam de afirmar isso. Bom, ele também disse que, se eu quisesse publicar, teria que alterar alguns pontos escritos sobre religião e tal. Olhei para ele e disse “Grandão o apelido dele era Grandão , vou pensar melhor” e deixei a ideia de lado. Ele era um amigo meu e continuou sendo até o dia da sua morte. Aí conheci uma pessoa que era dona da Editora Siciliano e tinha um editor chamado Pedro Paulo Senna Madureira só tinha duas pessoas que usavam gravatinha de borboleta, ele e o Jô Soares e os dois eram amigos, por sinal , ele disse “vou publicar e ponto final”.  Mas a Siciliano era uma editora de família e muito grande na América Latina. Aí ele me disse que tinha o selo Mandarim, que a gente publicaria nesse selo. Dito e feito. Então consegui separar o trabalho da editora e o trabalho como escritor. Hoje, trabalho em uma faculdade e quase ninguém lá sabe que escrevi esse livro. Geralmente, recuso gravações e entrevistas. Entre o palco e a plateia, eu sou a plateia. Em um espetáculo, vou gostar mais de assistir do que ser assistido. Mesmo quando decidi publicar, continuei com medo. Principalmente, de expor meu filho a alguma retaliação. Por indicação de um amigo meu, o redator-chefe da Revista Vogue aceitou ler os originais do livro. Antes, não o conhecia pessoalmente, mas me senti lisonjeado com a sua opinião sobre a minha obra. O redator em questão era Ignácio de Loyola Brandão – imortal da Academia Brasileira de Letras. Esse mesmo amigo que indicou a leitura do livro era dono de uma boate LGBT+ chamada B.A.S.E, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo, e ainda não se lançava livro em balada. Então fizemos o lançamento na livraria da Editora Siciliano, em Higienópolis e, na noite seguinte, fizemos no Clube B.A.S.E e foi um sucesso. Tinha muita gente. O que era para ser uma coisa à toa acabou virando um sucesso que vendeu muito e continua vendendo. Uma parte do lucro das vendas foi revertida na luta contra a AIDS. Na época, essa era uma causa sem verba nenhuma.

  1. Como foi a repercussão do livro?

A primeira surpresa foi a seguinte: naquela época, a gente não usava e-mail, o que a gente usava era caixa-postal. Eu abri uma em Alphaville (São Paulo). Na primeira edição do livro, a Siciliano fez uma tiragem de 3.000 exemplares e venderam tudo no primeiro dia. Aí se passaram dois meses e levei meu filho para passear. Aproveitei para ver a caixa-postal e não tinha nada dentro. Pensei comigo “puta que pariu, ninguém gostou do livro”. Quando fechei a caixinha, o pessoal ficou olhando, deram uma cochichada e uma menina gritou perguntando se eu era o Nelson Luiz de Carvalho. Disse que sim, expliquei que tinha lançado um livro, mas que não tinha chegado nada. Ela disse que todo mundo lá sabia sobre o livro e me mostrou quatro malotes fechados de cartas. Isso me arrepia até hoje. Com certeza, foi uma das coisas mais legais que já vivi. Era carta que não acabava mais, até gente que morava fora do Brasil. Muitas eram relatos de alunos, de gente que foi perseguida quando criaram coragem para assumir quem são, muita gente expulsa de casa. Tudo o que eu e a editora pudemos fazer, nós fizemos. Teve até um caso que a gente precisou mandar dinheiro para uma pessoa contratar alguém e conseguir se cuidar. Acho que a gente cumpriu uma grande função.

  1. Como foi o processo de escrita de Apartamento 41?

Apartamento 41 é a história real de um leitor, que chegou até mim através de uma das cartas que recebi em Alphaville. Esse livro teve uma série de censuras, já que envolvia uma pessoa muito poderosa. Quando foi lançado, eu não estava no Brasil. Depois do meu divórcio com a minha ex-esposa, casei com um rapaz e estávamos na Argentina. Eu trabalho muito, mas sou um bon-vivant e gosto muito de viajar. Quando saiu a segunda edição pelo Grupo Summus, publicamos com menos cortes, mas esse livro nunca foi lançado em sua totalidade. Nenhuma das histórias que publiquei são baseadas em fatos. Elas são totalmente reais. É um desrespeito com o leitor vender algo que não é.

  1. Quando irá publicar sua próxima obra?

O Marcus virou outra pessoa depois da morte do Renato e eu já tenho a segunda parte de O Terceiro Travesseiro pronta, mas ainda não tive vontade de lançar. Tenho também uma série de obras chamada William, que é um crossover de O Terceiro Travesseiro. Não tenho onde lançar, já que quero ter o controle sobre o meu trabalho. E, se isso não acontecer, alguém publica depois que eu morrer. Na época, a editora dizia que não podia lançar logo, que o primeiro livro estava vendendo bastante e aí se passaram muitos anos. Se eu publicasse agora, o livro teria que passar por mais uma revisão. O texto é dos anos 90. Mas não gostaria de ficcionalizar nada. É uma história real. O livro poderia ter sido um só, sem essa divisão em duas partes. O Terceiro Travesseiro tem mais ou menos 220 páginas e, juntando com a segunda parte, seriam umas 400, mas o preço da venda seria mais caro. Na primeira parte, tem a cena do velório e algumas coisas passaram despercebidas pelos leitores e, quando lerem a segunda parte, irão perceber. No enterro, na confusão toda do Marcus, tem um momento que ele pede para ficar sozinho com o Renato e o irmão do Renato, que era muito a favor do casal, brigou com o pai e pediu para os garotos terem um último momento e saiu todo mundo da sala. Essa parte mexe comigo até hoje. Aí o Marcus tirou a camisa e a colocou dentro do caixão, debaixo das flores, e tirou o tênis de Renato. Quando a família do Marcus chegou em casa, deram um remédio para ele dormir e, quando ele acordou, retornou ao cemitério e arranjou a maior confusão. Tem uma série de coisas que acontecem. Estou contando o primeiro capítulo. É a parte que eu mais gosto. Tem uma lição de vida ainda maior do que na primeira parte. Eu vou ser franco: um contrato com uma editora grande não me enche os olhos, a gente acaba não tendo controle nenhum sobre o próprio trabalho. Se tenho vontade de lançar? Juro que não tenho. Quando me perguntam “ah, você não pensa no público?”, é claro que penso, mas preciso pensar em muitas coisas. Não estou segurando o livro, só não consigo um contrato decente.

  1. Sobre William, é uma história que também envolve o protagonista de O Terceiro Travesseiro?

William é um romance mais moderno. Demoro muito para escrever porque isso para mim é um hobby. Essa é uma história muito mais moderna e me diverti pra caralho escrevendo. William é sobre os tempos atuais de O Terceiro Travesseiro. Hoje tenho muito contato com o Marcus, nós viramos amigos. A família dele mudou de residência. Depois de muita confusão, foram morar em um condomínio. William é o nome de um vizinho da família. Na série, o filho de Marcus já aparece mais mocinho, adolescente. William é o protagonista, mas a família de Marcus ainda está presente. Quando você escreve um livro, o grande tesão é para você mesmo. Então eu dou muita risada, até choro escrevendo. Tudo o que está em William também é real e é uma história tão forte quanto O Terceiro Travesseiro. Passa uma puta lição de vida, mas é uma linguagem completamente diferente. Acho que os leitores terão muitas surpresas e vão gostar muito. A vida real nem sempre é o que a gente quer ou imagina.