Por Débora Anunciação

Faltam personagens brasileiros no cinema internacional. Essa é uma realidade que incomoda não só muitos espectadores, que não se veem representados nas telonas, como os poucos atores que se arriscam a desbravar o mercado estrangeiro.

Não se sentir “latino” o suficiente já é uma questão para os habitantes de um país que não fala a língua majoritária da América do Sul. O cenário de exclusão é reforçado pelo bombardeio de produções audiovisuais que estereotipam comunidades inteiras e ignoram a diversidade de culturas, hábitos e até mesmo de linguagem, que compõem a América Latina.

Artistas conhecidos das telinhas brasileiras já interpretaram personagens estrangeiros em produções gringas, como é o caso de Wagner Moura, que deu vida ao narcotraficante colombiano Pablo Escobar em “Narcos” (2015-2017) e Alice Braga, intérprete da mexicana Teresa Mendoza em “Rainha do Sul” (2016-2021).

Há também casos de personagens brasileiros interpretados por artistas de outras nacionalidades, como em “Vingança Sabor Cereja”, série da Netflix na qual a americana Rosa Salazar vive uma jovem aspirante a cineasta brasileira.

“Música”, comédia romântica que estreou ontem (4) no Prime Vídeo, vai na contramão desse cenário. Protagonizado por Camila Mendes e Rudy Mancuso, filhos de brasileiros, o filme coloca a cultura brasileira em primeiro plano e aborda questões que afligem a comunidade brasileira mundo afora.

O enredo é baseado na vida de Mancuso, que também assina a direção. O protagonista, assim como seu intérprete, sofre de sinestesia, condição neurológica rara na qual barulhos externos soam muito altos e ressoam como uma grande música na sua cabeça, o que prejudica a atenção em coisas simples do dia a dia.

Camila Mendes nasceu nos Estados Unidos, filha de pai porto-alegrense e mãe brasiliense. Já a mãe de Rudy, que interpreta ela mesma no filme, é carioca. Ambos falam português e dublaram a si mesmos no filme.

Para Hollywood, ser latino é ser hispânico. Por isso, atores e atrizes brasileiros, em muitos casos, precisam aceitar interpretar outras nacionalidades. É o que conta a brasileira Camila Senna, que integra o elenco de “Música” como a personagem Luana.

A atriz, que vive nos Estados Unidos há cerca de cinco anos, percebe os impactos da falta de personagens brasileiros em sua carreira no mercado americano. “Como existe uma carência de personagens brasileiros e eu não pareço o estereótipo da americana, acabo fazendo teste e representando personagens mexicanas”.

“É como se eu não me encaixasse. O que é complicado, porque eles querem o sotaque perfeito do México, por exemplo, o que eu não tenho. Por isso, quando recebo personagens como a Luana, sei que não só vou dar o meu melhor, como tenho muito mais chances”, afirma.

A atriz considera “quase um milagre” achar personagens brasileiros em projetos estrangeiros. “O pior é quando eles colocam um personagem brasileiro, mas o ator ainda fala aquele português com sotaque americano”.

“A gente já tem tão pouca representatividade. Toda vez que pego um papel lá fora, eu penso no nosso país e no tanto de gente incrível e talentosa que o mundo ainda precisa conhecer. Quando eu ‘ganho’, sinto que todos nós ganhamos juntos”, conta.

Camila Mendes, por sua vez, revelou nas redes sociais que já pensou em mudar de nome artístico para ampliar suas possibilidades na indústria cinematográfica. “Como uma brasileira-americana que falava português em vez de espanhol, não parecia que a indústria tinha um lugar para mim. Ou eu não era latina o suficiente (pela definição deles) ou não era americana o suficiente”, escreveu a atriz.

“O fato de agora ter um filme que celebra essa parte da minha identidade, da maneira mais artística e cinematográfica possível, está além dos meus sonhos mais loucos”, completou Camila, conhecida por “Riverdale” (2017-2023).

Representatividade

Para Camila Senna, o filme traz representatividade para a cultura brasileira em um mercado conhecido por ser extremamente fechado. “Os protagonistas são de descendência brasileira, falam português e mostram um pouco da nossa cultura pro mundo. Tem algo mais especial que isso?”, questiona.

Nos Estados Unidos há cerca de cinco anos, Camila conta que nunca havia recebido um roteiro para interpretar uma personagem brasileira. “Desde a primeira vez que li o roteiro, pensei: esse papel é meu”.

Na trama, Luana é uma brasileira que mora em Nova York e sonha em se casar com um brasileiro, o quanto antes. “O sonho dela é casar e ter filhos. E ela tem pressa viu? Não brinca em serviço”.

“Ela é uma personagem que, por mais que tenha valores diferentes dos meus, também me identifico. E o melhor: é brasileira! Tem coisa melhor? Então estava em casa, né”, conta.

A interação da personagem com o protagonista é cômica e, segundo Luana, “reflete um pouco da realidade de muitos brasileiros que moram fora”.

Carreira internacional

Apesar das dificuldades, Camila reconhece que a transição para a carreira internacional não é impossível. “Nossa, posso falar? Não é fácil. Mudar de país já apresenta diversos desafios, atuando em outra língua então”.

“Ficar longe da família, se adaptar a outra cultura é só o começo. No início, o principal desafio era a língua, por mais que eu falasse inglês fluente desde pequena, como atriz eles querem que você não tenha nenhum sotaque”, lembra.

Ela acrescenta que o processo legal para trabalhar e morar nos EUA é extremamente burocrático e estressante. “Quem mora fora sabe bem. Mas, depois de muita luta e muita preparação, as coisas começaram a fluir. Hoje sou a prova de que é possível”.

A atriz reconhece a contribuição do cinema e da TV para a popularização da cultura brasileira globalmente. “Para vocês terem uma ideia, muitos americanos acham que o brasileiro fala espanhol, tá? Já tive conversas muito constrangedoras nesse sentido”.

“Uma representatividade maior pode começar a dar luz à nossa cultura aos olhos do resto do mundo. Por isso, quando vejo qualquer ator ou projeto do Brasil quebrando a bolha, eu celebro junto”, garante Camila.

Atualmente, Camila Senna se divide entre as gravações da próxima série da Record “A Rainha da Pérsia”, e outros projetos que ainda não podem ser revelados. O sonho dela é participar de uma série americana por um período mais longo. “Vamos ver o que 2024 ainda tem guardado pra mim”, torce.