“Lutamos pela libertação da terra, da escravidão do trabalho, que também passa pela libertação dos corpos e das pessoas”, afirma José Davi, liderança agroecológica bissexual em Sergipe

Foto: arquivo pessoal

A pauta LGBTQ+ tem crescido nos debates dentro dos movimentos sociais no meio rural brasileiro. O que era um tabu até muito pouco tempo, hoje tem grupos de trabalho e documentos para pautar o tema. Após muitas décadas de debate, agora a juventude colocou o assunto na ordem do dia e, aparentemente, é um processo que não tem mais volta. No final do ano passado, foi publicada pela Via Campesina, um dos coletivos históricos do campo internacional, uma cartilha sobre Diversidade Sexual e de Gênero.

Para tratar o assunto, conversamos com José Davi, de 22 anos, bissexual, morador do alto sertão do estado de Sergipe, município Porto da Folha, comunidade Lagoa da Volta. Ele é integrante do coletivo nacional LGBT ligado à Pastoral da Juventude Rural (PJR), que integra o setor mais progressista da Igreja Católica, e está inserido no coletivo de juventude da Via Campesina. Na entrevista à NINJA, ele fala sobre as diferenciações da LGBTFobia nas áreas rurais, e destaca a importância da pauta LGBTQ ao lado das lutas contra o patriarcado e o racismo para a construção de uma sociedade melhor. 

Esta é mais uma temática identificada pela iniciativa Agroecologia nos Municípios, realizada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Qual o motivo de o movimento ter aumentado a nomenclatura para LGBTQI+?

Antes só se referia às Lésbicas, Gays, Bissexuais e os Trans, e agora entram as pessoas Intersexuais e o mais é para apontar que a diversidade humana não se limita só a isso. O mais são os que já existem e os que ainda podem vir a existir.

Embora o tema aborde todas as idades, a pauta LGBTQ+ foi trazida mais pela juventude, não é?

É um tema da juventude, que quer engendrar esses processos dentro dos movimentos, o reconhecimento da luta sexual e de gênero. O campesinato é conservador, por toda a sua história e ligação com a igreja, tanto a católica quanto de outras religiões. Esses valores vão sendo sedimentados na mente do nosso povo e o torna conservador. É a juventude, com sua força e rebeldia, que traz o novo, como dizia Belchior: “o novo sempre vem”. Há cerca de seis anos, dizemos que é necessário ter, nos movimentos sociais e do campo, espaços para pautar esse debate. E que ele resulte em um mundo rural onde todos sejam aceitos da maneira que são. A juventude tem raça, gênero, sexualidade e classe, tudo isso tem que estar em conjunto. Não existe a construção de territórios livres do capital com LGBTfobia, racismo e machismo. A juventude diz, desde o ano passado, que quer uma liberdade completa e não parcelada. Só será revolução se for completa, inclusive libertando as LGBTs.

Há alguma diferenciação dessa pauta no meio rural em relação ao urbano?

O urbano é o lugar da criação desse novo e acaba sendo mais progressista, não estou dizendo que não exista LGBTfobia ou racismo. No entanto, o campo sempre foi excluído da informação. Estamos em um momento de transição: a eletrificação chegou e com ela a internet e, a partir daí, o campesinato está acessando informação. Isso nos torna mais progressistas, vamos entrando em contato com outras formas de ser e viver. Quando uma pessoa não adere, pelo menos respeita. Mas, em se tratando de campesinato, o contexto é muito mais massacrante, é a LGBTfobia, por causa dessa coisa mais tradicional e os valores morais, que ainda são mais impactantes. No espaço urbano, vão se esfacelando alguns valores que a sociedade tinha há algum tempo e criando novos. Não estou fazendo juízo de valor, mas o tempo do campo é mais lento que o da cidade.

Na cartilha elaborada pela Via Campesina, está em destaque a religião como um problema. No entanto, você mesmo participa de uma entidade progressista da igreja. Como é  essa discussão no meio rural?

Tudo na vida vai depender da nossa postura teórica e filosófica diante do tema. Então, pouco importa se eu sou cristão, mulçumano ou ateu. Isso é o que direciona a minha ação: sou um jovem cristão ligado à igreja católica. Defendo essa pauta [da diversidade sexual e de gênero], enquanto a estrutura da igreja nos condena. Com o novo papa, está se ensaiando um processo de mudança, mas nós da PJR vivemos da fonte da Teologia da Libertação, cuja corrente se funda nos anos 1960, com o Concílio do Vaticano II, a partir do papa João XXIII. Aqui na América Latina, chegou com a reunião dos bispos, em Medellín, na Colômbia, levando para as bases um Deus com os pobres, os excluídos, LGBTs e os escravos, o povo preto em geral. Essa é a base que nos dá fundamentação para sermos cristãos e lutarmos por essa liberdade. Entendendo também que a missão de Cristo não foi fundar uma instituição ou império. O Jesus Cristo que seguimos é totalmente distante da estrutura colonial de igreja, que existe no Brasil e foi herdada da Europa. Tentamos seguir o exemplo dos primeiros cristãos, que eram os marginalizados, as prostitutas e toda a gente considerada a escória humana da Roma antiga. Trazer para nossa vida o sentido de um Deus companheiro, que está ao nosso lado, não de um Deus rei, que oprime,mas sim o que contribui para nossa caminhada e evolução. Nós, enquanto juventude católica que está nos movimentos sociais, somos apenas um braço da instituição. Não podemos negar que o processo de opressão e negação da diversidade de gênero é real, e a igreja católica tem papel fundamental na manutenção desse sistema. 

Existem dados direcionados à LGBTfobia no campo?

São dados que estão na cartilha Diversidade Sexual e de Gênero da Via Campesina: Rompendo o silêncio sobre a existência das LGBTIs no campo. O principal é que aponta o Brasil como o país que mais mata pessoas LGBTIs no mundo. No ano passado, foram 329 pessoas. Destas, cerca de 300 foram assassinadas e 29 que se suicidaram. Entendemos que, nesse contexto, essas mortes são uma forma de assassinato porque a pessoa é levada ao suícidio.

Essa mobilização e maior visibilidade ao tema têm encontrado ressonância no poder público com políticas públicas e ações para atendimento às pessoas LGBTQI+?

A partir dessa mobilização da juventude da Via Campesina e dessa cartilha, o debate ficou mais firme. Tem menos de seis meses, então ainda não temos o fruto dessa mobilização. Porém, sabemos dos avanços que ocorreram nos últimos anos por conta da luta geral do campo e da cidade, como a legalização do casamento homoafetivo, a possibilidade de adoção do nome social por pessoas trans etc.

Como você enxerga a visibilidade sobre esse tema nos meios de comunicação?

Se as pessoas LGBTI, que se organizam e lutam há muito tempo no contexto urbano, ainda não conseguiram essa visibilidade, ainda é muito distante que nós do campo a tenhamos. A visibilidade que temos é a partir das nossas próprias mídias populares, mas na mídia tradicional se nega a existência destes sujeitos como integrantes da sociedade brasileira. Em geral, quando aparece uma pessoa LGBTQ+ na televisão é aquela figura caricata. Sempre uma pessoa que está ali para causar o riso e não como normal, que tem uma vida com problemas e família. Como diria Darcy Ribeiro, é como se fosse um zé ninguém. 

O movimento não vem de hoje, por que tem ganhado mais força recentemente? Tem a ver com o recrudescimento dos últimos governos sobre o tema?   

Alguns povos indígenas afirmam que estão aqui há mais de 500 anos, e os governos Temer e Bolsonaro significam pouquíssimo tempo nessa linha histórica. Se lutamos desde o processo de colonização, não será por causa desses governos que vamos parar. Isso se aplica à nossa luta, porque nossas articulações começaram por volta dos anos 1960, nos EUA, e foram se espalhando. Passamos por uma ditadura militar, veio a democratização e governos mais progressistas, e agora estamos em um momento mais conservador. A luta é abalada. Com certeza, ter um governo que está aberto a dialogar com nossas pautas em comparação a outro que não quer nem saber, muda muito. Mas continuamos lutando, apesar de haver retrocessos por conta da disseminação de uma ideia [homofóbica]. Temos de entender que o que Bolsonaro pensa é o que boa parte da sociedade brasileira pensa também. Ainda somos um povo racista, LGBTfóbico, censuradores. Levamos um sujeito com essas características ao poder, então significa que parcela da população, tendo em vista a alienação e a manipulação, sente-se representada naquela figura. E a população LGBT, independentemente disso, continua sua marcha. Claro que num ritmo mais lento agora, mas sempre caminhando.

Como a agroecologia se relaciona com a pauta LGBT?

A agroecologia é um guarda-chuva e debaixo dele estão muitas lutas: das mulheres, LGBTQIs, indígenas etc. É entendida como um processo de luta social, ciência e uma forma de viver e produzir a vida no campo e na cidade. É o que desejamos atingir como um modelo de sociedade. Um conceito que tem se disseminado e estudado muito é o do Bem Viver, uma alternativa ao desenvolvimentismo capitalista que supera todas estas teorias liberais e neoliberais que geram a exploração do povo e a degradação da natureza. Lutamos pela libertação da terra, da escravidão do trabalho, que também passa pela libertação dos corpos e das pessoas. O movimento feminista diz que não existe agroecologia com machismo e patriarcado, da mesma forma as pessoas LGBTs afirmam que não existe agroecologia com LGBTfobia e patriarcado. Temos uma visão de um mundo integrado, que perpassa o todo. Uma coisa não pode estar em desequilíbrio. É como se fosse uma teia de aranha, tudo interligado, e chegará em um ponto que poderemos dizer que estamos todos vivendo bem e com dignidade. 

É importante alertar que a questão da sexualidade é um instrumento construído historicamente. Cada sociedade, a seu tempo e com suas particularidades históricas, vai moldando o seu comportamento sexual e de gênero. O que está sendo o padrão heterosexual e patriarcal apenas está sendo. Como diria Paulo Freire: não é algo que é. Não podemos deixar que uma coisa passageira no processo histórico continue matando e excluindo, fazendo com que pessoas não sejam tratadas como tais pelo simples fato de gostar de outra do mesmo sexo ou pelo fato de nascer com um sexo biológico, mas se identificar com o oposto. Se é uma construção social, foi feita por nós, assim como o racismo, então podemos mudar. Não podemos mudar algo na natureza, como a gravidade, que é um fato físico, mas tudo que é feito em sociedade é possível mudar a partir de uma consciência crítica.