O filme de Jonas Poher Rasmussen aborda o passado e os traumas de um afegão que deixou o país de origem na infância e que, hoje, tenta negociar com seu estatuto de “refugiado”.

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Por Juliana Gusman

Flee, do dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, destacou-se na última edição do Oscar mesmo sem ser condecorado com uma estatueta. O filme foi o primeiro a ser indicado simultaneamente ao prêmio nas categorias de Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Documentário e Melhor Animação. Este reconhecimento sinaliza a feracidade das produções de não-ficção, longe de ofertar meros registros do real.

Neste animadoc, como costuma-se chamar a articulação entre dois territórios fílmicos aparentemente opostos, Rasmussen investiga o passado de um amigo, identificado na obra como Amin Nawabi – seu nome correto é preservado –, que teve que deixar o Afeganistão, seu país de origem, ainda criança, no começo dos anos 1990. Ameaçados pelos conflitos herdados da guerra civil que se iniciara em 1979, Amin e sua família fogem para a Rússia pós-soviética para depois tentar aportar, não sem dificuldades, na Europa Ocidental. O medo da deportação após a chegada na Dinamarca levou o protagonista a recalcar reminiscências, ocultando parte de sua vida inclusive do namorado, com quem, no presente, está prestes a se casar. Flee, que foi exibido no Brasil em 2021 durante o festival É Tudo Verdade, chega agora às nossas salas de cinema.

Os usos da animação em narrativas documentais, na verdade, têm sido amplamente explorados. Podemos recordar, por exemplo, de Valsa de Bashir (2008), do israelense Ari Folman, que também pretendeu acessar os cantos empoeirados de uma memória penosa. Folman, veterano da Guerra do Líbano de 1982, ambicionou reconstituir sua própria participação nos eventos que levaram aos massacres de Sabra e Chatila, que vitimizaram civis libaneses e palestinos. Como em Flee, os desenhos conseguem materializar fatos e acontecimentos que, de outra maneira, permaneceriam inacessíveis – não apenas pelo distanciamento temporal, mas pelo peso do trauma, outra via de perpetuação de esquecimentos.

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No trabalho de Rasmussen, as animações em 2D tanto reconstituem a biografia de Amin e o representam, respeitando seu desejo por anonimato, nos dias de hoje, quanto tentam lidar plasticamente com essas perturbações subjetivas. Os traços bem delineados são substituídos por borrões em preto e branco quando o personagem discorre sobre suas lembranças mais agoniantes: como a prisão do pai ainda no Afeganistão, cujo destino jamais foi elucidado pelos filhos; ou a travessia conturbada das irmãs para chegar à Suécia, que instigou os piores receios de uma imaginação infantil já abalada por muitas adversidades.

À animação são intercaladas imagens de arquivo, que estabelecem um efeito de choque capaz de potencializar a verve crítica da obra. A imersão provocada pelo relato de Amin, que poderia estimular leituras ficcionalizantes de uma história de proporções quase épicas, é sempre interrompida por esses lampejos referenciais, que nos devolvem a outra espectatorialidade, própria do documentário: de engajamento e comprometimento com questões sociais e políticas de primeira importância. Afinal, não se trata de fabulações. Flee promove envolvimentos afetivos, mas não deixa de interpelar o público, com essa estratégia formal, a assumir responsabilidades éticas.

As negociações com a alteridade estão no primeiro plano de suas urgências. Fala-se, sobretudo, sobre o estatuto do “refugiado”, uma categoria de força identitária que consegue limitar a circulação cotidiana de certos sujeitos. Como um estigma, essa classificação apequena cidadanias e torna algumas vivências desimportantes. Não obstante, Flee consegue abordar esses dilemas sem reiterar apoucamentos. Amin não é definido por esta condição: complexifica-se suas experiências para não rebaixá-lo a um mero estereótipo, tão semeado pelo jornalismo vigente que não cansa de nos anestesiar com imagens sensacionalistas de dor e sofrimento.

Amin foi um jovem que gostava de música pop e dos filmes de Jean-Claude Van Damme – e do próprio Jean-Claude Van Damme. Foi um adolescente que descobriu de pouco em pouco a homossexualidade e que matava tempo escovando os cabelos das irmãs, de quem às vezes “roubava” vestidos. Amin tornou-se um acadêmico de considerável prestígio e um grande amante de gatos. É um homem de trinta e poucos anos que tenta conciliar a sua relação amorosa com as demandas de um trabalho que o chama para novos deslocamentos.

Em certa medida, Flee é um documentário de busca: não só de um passado reprimido, mas da superação do “despertencimento”. Não por acaso, o filme se inicia com Amin, numa espécie de divã, reflexionando sobre os sentidos da ideia de “lar”. Para ele, “casa” é onde se pode estar. E, no processo quase psicanalítico de feitura da obra, Amin persegue, discursivamente, a permanência como a cura para suas angústias.

Juliana Gusman é jornalista, professora e pesquisadora, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP. É colaboradora do blog Piracema, da plataforma de cinema artesanal Cardume Curtas.