Foto: Divulgação/Confederação Nacional da Agropecuária

Por Eliana Conde Barroso Leite*

O Brasil retorna ao Mapa da Fome da ONU em meio a festejadas supersafras e à exaustiva divulgação de um setor agrícola pujante e vencedor.

Falta de renda e desemprego são fatores estruturais preponderantes na determinação da fome, mas e no campo? O que tem acontecido no campo para que os preços dos alimentos subam tanto num país de tamanho potencial agropecuário? O que faz um quilo de queijo custar 80 reais se o leite está sendo pago a 2,40 reais ao nível do produtor?

A resposta é: falta de política de autossuficiência alimentar, abandono das políticas de regulação do abastecimento e crescimento agressivo da produção de commodities (mercadoria de baixo valor agregado) em detrimento das lavouras alimentares como arroz e feijão.

Segundo Silvio Porto, a fome sempre esteve presente na história do Brasil e apenas no início do século XX é que ela se tornou uma preocupação governamental, durante a industrialização promovida por Getúlio Vargas.

Nos anos 60 e 70 foram criadas a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), a Companhia de Financiamento da Produção, a Companhia Brasileira de Armazenagem, as Centrais de Abastecimento (Ceasas), a política de crédito rural, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater), o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan), a Rede Somar e o Programa de Alimentação do Trabalhador, dentre as principais iniciativas de aumento da produção rural e promoção do acesso ao alimento.

Em 2003, após as políticas neoliberais dos anos 80 e 90 que incentivaram a autorregulação do mercado de alimentos, a alimentação ressurge como prioridade política, com a criação do Programa Fome Zero, o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Nutricional e Combate à Fome, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), o Plano Safra para a Agricultura Familiar e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Fortalece-se a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e dá-se a retomada dos estoques públicos como amortecedores das flutuações dos preços dos alimentos.
Nos anos posteriores, o Brasil por fim deixou de adotar uma política nacional de abastecimento, havendo portanto, grande inconstância do país neste quesito.

Atualmente, com a disputa mundial por commodities agrícolas, o Brasil aguça sua condição agroexportadora, ou seja, suas melhores terras são disputadas por plantios que não serão destinados ao país.

“Pelos campos há fome em grandes plantações”, já cantava o compositor Geraldo Vandré no fim dos anos 60. Para se ter uma ideia, atualmente cerca 75% da produção anual de soja, em torno de 120 milhões de toneladas, é exportada, sendo que 70% deste volume é destinado à China. Por outro lado, as importações de arroz e trigo se ampliaram, com a queda na área plantada dos cereais. O dólar fortemente valorizado frente ao real também estimulou os plantios de soja e milho para exportação.

Nos anos recentes, o desmonte da Conab desarticulou a política de estoques reguladores estratégicos, ou seja, o governo comprava na safra para vender na entressafra, e assim, amortecer a trajetória altista de preços de alimentos.

De acordo com o portal Brasil de Fato, o atual governo acentuou o processo de desmonte da empresa pública responsável pela política de estoques estratégicos de alimentos, a Conab. Das 92 unidades armazenadoras cerca de 27 foram fechadas e se em 2012 os recursos movimentados pela empresa totalizaram R$ 600 milhões, em 2020 este montante não passou de R$ 15 milhões.

O processo de desmonte da Companhia Nacional de Abastecimento é um anseio da bancada ruralista no Congresso e se iniciou quando Blairo Maggi, um dos maiores plantadores de soja do Brasil, estava à frente do Ministério da Agricultura no governo Michel Temer. De acordo com o Joio e o Trigo, Blairo Maggi é dono de uma empresa de armazenagem privada de grãos.

“O papel que a Conab exerce no abastecimento é uma questão estratégica. É uma questão de Estado”, afirmou Silvio Porto ao Joio e o Trigo. “Exatamente pelo papel que isso tem com milhares de pequenos e médios produtores. O enfraquecimento da companhia só vai privilegiando cada vez mais a concentração do setor de carnes, a concentração dos grandes, que essa é a lógica do agronegócio.”

Na década de 1970, a Conab estocava grãos, carne e leite, entre outros produtos. A falta de estoques públicos a preços acessíveis afeta também a cadeia do leite e da carne, impactando nos preços da cidade. Por sua vez, a concentração do sistema agroalimentar brasileiro nas mãos de poucas empresas varejistas acentua ainda mais a capacidade destas na determinação de preços agropecuários.
É simples. Ausência de política agrícola cria o quadro atual de carestia. Para Miguel Daoud, política agrícola é o seguinte: preço caiu, governo entra comprando até para manter o preço mínimo para o agricultor. Subiu, sai vendendo”.

O governo Bolsonaro informou ao Joio e o Trigo que as razões da reestruturação da Conab como o fechamento das 27 unidades armazenadoras são sigilosas.

Eliana Conde Barroso Leite é engenheira agrônoma em Niteroi. Trabalhou na coordenação da Campanha Nacional por um Brasil Livre de Transgênicos pela ONG AS-PTA.