Mesmo em casos famosos de letalidade policial contra negros, Justiça brasileira evita responsabilizar agentes e instituições

Manifestantes cobram justiça na 19ª Marcha da Consciência Negra em São Paulo. Foto: Mídia NINJA/

Condenações anuladas em segunda instância, penas reduzidas, inquéritos arquivados, causas dos assassinatos atribuídas às próprias vítimas, absolvições sumárias, versões dos policiais tomadas como verdade processual, testemunhas de acusação ignoradas e medidas de reparação a familiares de vítimas tratadas com descaso. Estas são apenas alguns exemplos usado pelo sistema de justiça brasileiro para não responsabilizar indivíduos e instituições em processos de violência letal praticada por agentes de segurança contra pessoas negras.

O Núcleo de Justiça Racial e Direito (NJRD) acaba de lançar uma pesquisa feita ao longo das últimas três décadas com oito casos emblemáticos de violência letal de autoria de agentes de segurança contra pessoas negras que mostram a inércia do Ministério Público (MP), responsável pelo controle externo da atividade policial.

Os casos analisados são: Massacre do Carandiru (1992); Favela Naval (1997); Chacina do Borel (2003); Caso Amarildo (2013); Chacina do Cabula (2015); Massacre de Paraisópolis (2019); Caso Luana Barbosa dos Reis (2016); e Caso João Alberto Freitas (2020).

“Os oito casos emblemáticos do estudo, só chegaram a ser apurados após intensa pressão social e mobilização de organizações de fora do sistema de justiça, como instituições de direitos humanos e movimentos sociais”, informa o estudo da FGV (Fundação Getulio Vargas).

No caso do Massacre do Carandiru, por exemplo, a pesquisa constatou que o Tribunal de Justiça de São Paulo foi o responsável direto pela demora da tramitação do processo e pelas anulações (sem base legal) das condenações ocorridas nos júris do Coronel Ubiratan (que comandou a ação), em 2001, e de PMs acusados, em 2013 e 2014.

Um dos coordenadores do estudo, o professor da FGV Direito, Thiago Amparo, destaca que, embora a pesquisa tenha encontrado respostas do poder público que não ocorreriam em episódios de menor repercussão, “no sistema de justiça, persistem os mesmos padrões presentes em casos ignorados pela imprensa”.

“São casos marcados por muita atenção da mídia. O controle social intensificado pela visibilidade das histórias, pela lógica, poderia pressionar juízes e promotores a atuarem com algum zelo procedimental. Isso, de fato, não aconteceu”, constata.

“Na dúvida, os homicídios foram inicialmente tratados como resultantes de confrontos entre as polícias e vítimas, como se este fosse o padrão quando os mortos são negros”, diz o sociólogo Paulo Ramos, um dos autores do estudo.

A pesquisa contou com o apoio do Google.org, instituição filantrópica do Google, da Tides Foundation, do o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro), do CEBRAP e do CQS/FV Advogados.

Histórias de brutalidade policial

Em 2021, 84,1% do total de 6.145 mortes em decorrência de intervenção policial foram de pessoas negras. Para a professora da FGV Direito, Marta Machado, que coordena a pesquisa e o NJRD há um processo de banalização dessas mortes conectado ao racismo.

“Por isso esses crimes somem do radar das narrativas midiáticas, porque somem também da memória pública”, afirma. Para ela ocorre reiterada legitimação de condutas homicidas por parte da polícia: “Há uma linha de continuidade, por exemplo, entre o judiciário e a cobertura jornalística. Ambos tendem a ler as vítimas prioritariamente como inimigos públicos, justificando os assassinatos”.

Há mais de uma década Marta estuda como, principalmente, as instituições do sistema de justiça brasileiro reagem a graves violações de direitos humanos. Entre suas principais pesquisas consiste em acompanhar o processo contra os acusados pelo Massacre do Carandiru, em 1992, cujo trânsito em julgado foi recém reconhecido pelo STF – o que quer dizer que os culpados não podem mais recorrer.

Recomendações

A pesquisa traz ainda uma série de recomendações para que as instituições – em especial as do sistema de justiça – interrompam práticas que têm redundado na legitimação da violência racial. Entre elas estão o reconhecimento da palavra de familiares, sobreviventes e outras testemunhas e não preferencialmente a versão dos agentes de segurança envolvidos nos casos.

Em segundo lugar, os pesquisadores sublinham a necessidade de que o sistema de justiça criminal brasileiro reconheça as evidências do racismo de Estado e seu impacto nas mortes. “O primeiro passo é retirar dos agentes do estado a exclusividade das versões dos casos. O testemunho de civis, de sobreviventes e de familiares das vítimas precisam ser considerados nos julgamentos”, pontua Paulo Ramos.

Entre as recomendações também está a necessidade de uma cobertura midiática que não confunda vítimas e investigados, e consiga informar com mais objetividade sem reforçar estereótipos raciais. “Quando há pouca ou nenhuma responsabilização judicial, é importante que ao menos a mídia não inviabilize o ativismo de familiares e acabe revitimizando-os”, diz Juliana Farias, uma das coordenadoras do projeto.

Por fim, os autores da pesquisa destacam a importância de que as instituições ouçam organizações e movimentos negros, além de familiares de vítimas, antes de responderem à violência de Estado. “Certamente é um passo sem o qual não romperemos o círculo de violência racial. Se somente quem puxa o gatilho for responsabilizado, nunca haverá compromisso efetivo com a não repetição de práticas de violência racial. É preciso chamar atenção para cada parte dessa engrenagem que administra burocraticamente as mortes de pessoas negras”, conclui Juliana Farias.

Podcast ‘Justiça Preto e Branco’

O estudo deu origem a um podcast com episódios sobre cada um dos oito casos. Narrado pelo ator Christian Malheiros e pela criadora de conteúdo Andreza Delgado, “Justiça em Preto e Branco” ouve personagens que fizeram parte direta ou indiretamente das histórias de brutalidade policial – familiares, ativistas, advogados, parlamentares e especialistas.

A produção investiga o que acontece depois que se exige justiça, quando crimes cometidos por agentes de segurança vão parar efetivamente nas mãos das instituições. Junto com o podcast também entra no ar um site com informações completas sobre a pesquisa e cada uma das histórias.

Com informações do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV

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