Foto: Caio Oviedo/ Divulgação

É com criatividade e bom humor que Claudia Campolina leva às redes sociais o ‘Mundo Invertido’, uma websérie de vídeos com cenas do cotidiano de uma forma diferente, trazendo uma crítica às atitudes machistas. A personagem criada pela atriz, diferente das mulheres do mundo real, protagoniza comportamentos machistas naturalizados entre os homens. As esquetes, que já superaram 40 episódios, viralizaram no TikTok e no Instagram.

A seguir, você confere uma entrevista exclusiva com a atriz que conta mais sobre o processo criativo, os desdobramentos dos vídeos publicados na internet e o papel do humor na construção de narrativas contra o machismo.

1- De onde veio a ideia do mundo invertido?

Veio de um acaso não tão acaso assim! Eu estava sentada no sofá pensando em qual conteúdo/roteiro poderia criar quando tive a ideia do vídeo “Se o feminismo fosse igual ao machismo”. Eu peguei frases machistas que mulheres ouvem a vida inteira e as inverti de forma bem humorada e com o objetivo de divertir e causar empatia (se coloque no lugar do outro, ou da outra, como é o caso)! Tempos depois de ter criado o vídeo, acreditando que a ideia havia partido dessa inspiração no sofá, me lembrei que há alguns anos, tinha pensado em escrever um roteiro de um filme que falava de um mundo onde as mulheres reprimiam os homens. Acabei não desenvolvendo o roteiro, mas a ideia voltou a bater na minha porta.


Além disso, eu tinha visto alguns conteúdos antifeministas que deturpavam completamente o significado do movimento feminista. Conteúdos consumidos por um número enorme de mulheres e feitos também por elas. A soma dessas 3 coisas são responsáveis por esse primeiro vídeo.

Quando o postei nas redes, não fazia ideia de como ele seria recebido! Até acreditava que tinha potencial pra ser bastante visualizado, mas também imaginava que podia gerar muito hate. Para minha surpresa, os haters foram poucos e o vídeo viralizou no tiktok! Em poucos dias já tinha mais de 1,5 milhão de visualizações e havia milhares de comentários pedindo a continuação! Acabei fazendo 7 partes e, nesse meio tempo, pensei: poxa, isso da uma webserie. Posso criar esquetes curtas com cenas específicas. Assim surgiu o Mundo Invertido. Alguns meses depois, já são 38 episódios, cada um com um tema de pano de fundo: assédio, traição, criação dos filhos, vestimenta, etarismo, etc…

2 – Claudia, você sempre tratou de temas relacionados à mulher em sua carreira?

Não exatamente. Eu sempre gostei de escrever sobre assuntos variados! No meio desses assuntos, temas relacionados à mulher eram recorrentes, mas não a regra. Lembro que há alguns anos, tinha começado a escrever um livro de contos de casos amorosos de mulheres, por exemplo, mas a vida de atriz começou a tomar mais tempo e acabei o deixando na gaveta. Nos últimos anos, eu criei bastante poesia, escrevi sobre política e outros temas, mas sempre movida pela inspiração, sem compromisso com transformar esses conteúdos paralelos em algo mais profissional. Somente na pandemia eu voltei minhas energias para escrever, diariamente, roteiros para eu mesma atuar e jogar nas redes! Fiz conteúdos diversos, e no final das contas, a mulher acabou se tornando o eixo central das minhas obras.

3 – Qual tema é mais difícil de abordar nesse universo feminino na perspectiva machista?

São muitas as dificuldades.

Temas muito sensíveis como violência doméstica, abuso e estupro são os mais complicados porque o humor é chave da webserie. É sempre mais difícil tocar nesses temas através dele, sem deixar de lado a gravidade do assunto.

Outra dificuldade é lidar com o universo da protagonista do mundo invertido. Às vezes, tenho desejo de fazer vídeos mais inclusivos, trazendo pessoas trans para o centro do debate, por exemplo, mas me lembro que esse machismo tão enraizado na nossa sociedade é heteronormativo e apoiado na cisgeneridade. A protagonista da série é uma femista tóxica (palavra que uso como sinônimo de machista) que vê o mundo só a partir da biologia, dos supostos papéis de gênero, etc. Ela é o espelho desse machista orgulhoso na versão mulher que reprime homens. Tenho que mostrá-la como uma vilã de mentalidade tacanha e atrasada.

Eu também tenho dificuldade em misturar as duas lógicas que uso no Mundo Invertido! Eu trabalho com frases invertidas simplesmente. Por exemplo: “Sente-se como uma mocinha”, vira “sente-se como um mocinho”; e crio uma lógica matriarcal, me apoiando em supostas características dos homens e das mulheres aqui do mundo real. Por exemplo: no episódio em que a mulher trai o marido, eu digo que isso aconteceu porque a mulher tem mais amor pra dar, então é da natureza dela transar mais e não se controlar. Me valho desses supostos comportamentos naturais, “é do homem fazer isso”, no modo invertido, para justificar a dominação de um gênero sobre o outro. Assim como faz o machismo. Acho importante inventar essas justificativas absurdas que fazem tudo parecer ter sentido. Essa estrutura matriarcal opressora da série fica mais sólida dessa maneira. Aliás, dá pra construir pseudo lógicas infinitas para justificar qualquer tipo de dominação!

Enfim, é difícil misturar esses dois fatores: frases só invertidas e lógica matriarcal opressora. Às vezes soa incoerente, mas não é o machismo o puro suco da incoerência?

Por último, e não a ver com a dificuldade de abordagem do universo, vem a dificuldade de lidar com as redes sociais! Eu sou uma atriz e uma roteirista, crio ficção, faço uma personagem, não me considero uma ativista, não sou uma especialista no assunto, têm muitas mulheres e coletivos muito mais preparados e merecedores para ocupar esse lugar. Sou apenas uma artista, uma mulher atravessada pelo machismo, como qualquer outra. Eu me comunico pelo meu trabalho, mesmo que fale como Claudia também, mesmo que adore a troca com as pessoas que me acompanham nas redes. O meu trabalho não tem estatuto de verdade. É ficção, e como tal, tem o objetivo de deslocar, entreter, fazer rir, incomodar, questionar, propor empatia, outra possibilidade de mundo ou seja lá o que for, depende de como o espectador vai se sentir. É difícil separar a atriz criadora da pessoa física. As redes sociais misturam muito essas duas esferas!

4 – O que você acha mais absurdo de tudo que já ouviu que você usou no mundo invertido?

Na hora de escrever, na maior parte dos casos, eu crio o roteiro de cada episódio em cima de frases variadas e unidas pelo mesmo tema. Por exemplo, no vídeo de denúncia de assédio ou abuso, a protagonista vai dizendo várias frases que mulheres, normalmente, ouvem aqui no mundo real quando vão fazer uma denúncia. As frases desse tipo de episódio, saem da minha própria experiência ou da experiência de mulheres ao meu redor, como também de frases encontradas na internet. Eu acabo me deparando com absurdos que, algumas vezes, nem conhecia.

Em outros casos, eu crio o roteiro em cima de uma história real. Ao invés de frases soltas, esses episódios têm formato de monólogos. Algumas coisas são muito chocantes e por serem episódios inspirados em uma situação específica, acabam soando mais absurdos ainda. Dois exemplos que usei são recentes e me deixaram muito abismada! Um é o áudio vazado do ex deputado Arthur do Val e o outro é a escola que proibiu alunas que usavam cropped ou moletom sem blusa por baixo ou calça rasgada de assistirem às aulas porque poderiam sofrer assédio dos meninos e a diretoria não se responsabilizaria por eles! Pergunta se algum funcionário revistou algum menino pelo mesmo motivo? Obviamente, a regra só se aplica às meninas.

5 – Como é seu processo de criação para o roteiro da série?

É caótico e diário! Eu não tenho uma rotina de criação, assim como não me obrigo a ter dias e horários específicos para postar os episódios! Estou sempre atenta a tudo que aparece sobre misoginia e machismo… Anoto várias coisas no bloco de notas do celular, coleciono prints de matérias, troco com seguidoras, lembro de casos que aconteceram comigo ou pessoas que conheço, vejo filmes, leio livros, procuro conteúdos nas redes, ouço mulheres, homens, observo comportamentos, etc. Tudo me contamina! Tudo é material. Eu me coloco sempre disponível para ser atravessada por ele. Claro que algumas coisas já estão preestabelecidas, como: a estética, o tom de comédia, ironia e deboche, a personalidade da personagem.

Mesmo assim eu não me prendo a nada. Aproveito a liberdade da linguagem da internet e fico aberta para quebrar qualquer regra se preciso for.

6 – Você sente que homens começaram a notar os machismos do dia a dia depois da série viralizar? Eles comentam alguma coisa ou são mais as mulheres que o fazem?

O meu público hoje é 85% formado por mulheres! É muito mais comum receber comentários delas, entretanto, alguns homens aparecem de vez em quando! Já recebi comentários do tipo: “obrigado, quero que minha filha viva num mundo mais livre” ou “sou de 84, o machismo vem de fábrica, cada dia a gente desconstrói um pouco” ou “adoro o seu conteúdo, ele é muito divertido”. O comentário mais comum é dizer que a série “dá um bug na cabeça porque a gente está tão acostumado com o machismo que na hora que eu inverto a situação, nem sempre é possível entender de primeira”. Tem seguidor que fala que assiste aos vídeos várias vezes pra pegar tudo. Tem seguidor que fala que algumas coisas que falo eles próprios já falaram ou falam no mundo real. Outros dizem que algumas coisas nem tinham se dado conta de que era machismo! É um processo, né? Está enraizado em todos nós, a gente vai se liberando aos poucos, cada um à sua maneira, no seu tempo. O importante é a gente se dar conta.

Eu acredito que o humor seja uma ferramenta muito poderosa para falar disso sem soar incisivo, fica mais leve, apesar da gravidade do tema! Eu acredito que o humor faça a mensagem chegar de outra maneira, talvez até mais absorvível. O que não quer dizer que não apareçam os haters, né? Às vezes, surgem homens dizendo que assim seria o mundo se o feminismo vencesse ou que eu estou fazendo o mesmo que reclamo dos homens fazerem. No melhor estilo “se fosse um homem falando essas coisas vocês fariam um escândalo”. Homens que não entendem a ironia e que esse mundo que eu proponho é igualmente tóxico e apenas serve de crítica ao machismo. Outro dia recebi o seguinte comentário: “o feminismo é o maior inimigo das mulheres. A tão sonhada “liberdade” feminina transformou-se numa prisão! Hoje, as mulheres se veem presas a estereótipos ditados pela agenda feminista, cujo maior objetivo é destruir a essência da mulher, tornando-a igual ao homem, transformando seus úteros em lugares estéreis e silenciando o apelo natural que elas tem à maternidade.”

Em pleno 2022 ainda nos deparamos com homens que pregam que a mulher nasceu para parir e que sem isso ela não é mulher. E se fosse ao contrário? Por isso, criei o episódio 38 do Mundo Invertido. O título é Sispriating, termo similar ao Bropriating e usado quando um homem rouba a ideia de uma mulher e ganha destaque por ela. Nele, eu roubo o comentário desse homem, invertendo a lógica do seu comentário. Troco palavras como feminismo por masculinismo, úteros estéreis por sacos estéreis e tendência à maternidade por tendência à paternidade. Se um homem tem milhões de espermatozóides, é de se esperar que ele tenha uma inclinação natural pra ser pai, diferentemente da mulher, que só tem um útero e só pode engravidar de um homem a cada 9 meses. Não é mesmo? O homem pode sair engravidando várias, justifica a femista tóxica do Mundo Invertido. Concluo com “o que falta pra esse homem são grandes lábios pra comerem ele de jeito. Aí ele larga essas ideias masculinistas todas!”

Para que devolver o hate? Ele me entregou um roteiro pronto.

A comédia é, muitas vezes, nossa melhor arma.

Carreira
Claudia Campolina mudou o foco artístico dela devido a pandemia e criou o TikTok em 2021. Ela já atuou na novela Insensato Coração (Globo), na série Politicamente Incorreto (FOX/Netflix), nos filmes Essa Obra é para Você Alice e A Pedra da Serpente (Amazon Prime). Atualmente ela está gravando um filme documentário sobre o compositor e músico Heitor Villa Lobos.