Foto: Reprodução / Aventuras na História

Um conteúdo publicado neste domingo (17) pela jornalista Míriam Leitão, colunista de ‘O Globo’, mostra áudios inéditos gravados pelo Superior Tribunal Militar (STM) que comprovam e elucidam casos de torturas durante os “anos de chumbo” da ditadura militar no Brasil.

O historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), teve acesso a mais de 10 mil horas de gravação do STM. O órgão passou a gravar as sessões a partir de 1975, mesmo as secretas.

“Em 2006, o advogado Fernando Augusto Fernandes pediu acesso. Não conseguiu. Foi ao Supremo, que mandou liberar. O STM não obedeceu. Em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou o acesso irrestrito aos autos. O plenário acompanhou a ministra. Em 2015, as centenas de fitas de rolo foram digitalizadas. Fernandes analisou apenas 54 sessões. Em 2017 consegui copiar a totalidade das sessões. Aprimorei o áudio e passei a ouvir”, explicou o professor à coluna.

Em um dos áudios, que a coluna destaca, o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos, em 24 de junho de 1977, elucida o caso de Nádia Lúcia do Nascimento, que foi torturada enquanto grávida até perder a criança.

“Fato mais grave suscita exame, quando alguns réus trazem aos autos acusações referentes a tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no Codi-DOI”, diz o áudio.

Ele fala que a vítima “estava grávida de três meses, ao ser presa, tinha receio de perder o filho, o que veio a acontecer no dia 7 de abril de 1974”, e conta que o aborto foi provocado por “choques elétricos no aparelho genital”.

Foto: Divulgação

“Esse material é inédito, os áudios são impressionantes. Mesmo quando tentam negar, os oficiais generais das três forças e os juízes togados se espantam”, conta Miriam Leitão em coluna. “O juiz Waldemar Torres da Costa, no dia 13 de outubro de 1976, diz ‘eu confesso que começo a acreditar’. O brigadeiro Deoclécio Lima de Siqueira defende as ‘forças antissubversivas’ e se diz contra o STM receber as denúncias”.

Nos áudios, os ministros do STM conversam sobre as torturas, duvidando em alguns casos, pedindo a comprovação por exame de corpo de delito em outros, mas geralmente aceitam as denúncias quando as acusações são ao Dops. Em um dos trechos, o ministro Waldemar Torres da Costa debate. “Quando as torturas são alegadas e, às vezes, impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente.”

Em outro áudio, de 19 de outubro de 1976, o almirante Julio de Sá Bierrenbach diz que as denúncias atingem a imagem do Brasil no exterior. Ele é favorável ao regime ditatorial, mas classifica os torturantes como “sádicos” e “indivíduos covardes”. “Já é hora de acabar de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais”.

Documento histórico

Em entrevista ao Fantástico, o historiador Carlos Fico que esse avanço nas investigações de crimes praticados por militares na ditadura brasileira serve como importante fator para valorização da democracia. Ao G1, ele reforça que mesmo que saibamos que havia tortura durante o regime, ainda há pessoas que “tendem a criar memórias que as apaziguem com o passado”.

A Comissão Nacional da Verdade chegou a divulgar, em dezembro de 2014, um relatório responsabilizando 377 pessoas por crimes cometidos durante a ditadura, entre os quais tortura e assassinatos. O documento apontou 434 mortos e desaparecidos na ditadura; e 230 locais de violações de direitos humanos. À época, o Clube Militar chamou o relatório de “coleção” de “calúnias” e de “absurdo”.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, Humberto Costa (PT-PE), informou que solicitará acesso aos áudios para tomar as providências cabíveis.

Tortura não é exceção

Para o pesquisador Lucas Pedretti, que integra o Coletivo Memória RJ, ele alerta contra uma abordagem sobre o caso que acabe reafirmando que a tortura era uma prática excepcional contra alguns presos políticos, quando ela se tornou, na verdade, o modus operandis da atuação das forças policiais no país como um todo. 

“Os órgãos de repressão política aprenderam a torturar com os policiais responsáveis pelo controle social das chamadas ‘classes perigosas’. Em outras palavras, foi a violência que historicamente se voltou contra a população negra e os moradores de favelas e periferias que alimentou a violência dita ‘política'”. Ele cita um major da PM que afirmou estar acostumado a interrogar presos em favelas ao ser chamado para atuar na Doi Codi contra os presos políticos.