O MS é o estado com mais registros de trabalho escravo e indígenas Guarani-Kayowá são maiores vítimas (Mídia Ninja)

 

Em 18 anos, 1.640 trabalhadores indígenas foram resgatados em condições análogas à escravidão. Só durante a pandemia, foram 115 resgates. Um levantamento sobre a situação foi realizado pela reportagem da Mongabay, com base em registros da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), cruzados com informações de auditores fiscais do Trabalho que foram entrevistados.

A análise de dados revela que o trabalho escravo de indígenas está intimamente ligado ao setor agropecuário, pois das 303 pessoas resgatadas de 2010 a maio deste ano, 94,8% se enquadram na categoria da Detrae de “trabalhadores agropecuários, florestais e da pesca”.

O recorte do ano de 2022 confirma a avaliação, já que 77% dos indígenas resgatados trabalhavam no setor agropecuário. Os outros 18% eram trabalhadores volantes (ajudantes gerais na agricultura, como cerqueiro, descascador, capinador, etc) e 5%, profissionais do sexo.

E quanto às localidades, é o estado de Mato Grosso do Sul que tem mais registros de trabalho escravo de indígenas. Alguns fatores ajudam a explicar essa situação, mas, segundo a antropóloga Lúcia Helena Rangel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o processo histórico de expropriação dos territórios indígenas para dar lugar ao agronegócio é o principal deles.

“No Mato Grosso do Sul, o agronegócio empurrou historicamente comunidades indígenas para territórios muito pequenos. A situação piorou com o passar dos anos, em que a população indígena cresceu, mas as suas terras não”, diz Rangel à reportagem da Mongabay.

Um relatório do Instituto Socioambiental (ISA) de delimitação e identificação dos Guarani-Kaiowá mostra que o território tradicional dessa etnia estendia-se por uma área de 40 mil km². Atualmente, suas terras não passam de 22 pequenas aldeias situadas em uma faixa de terra de cerca de 150 quilômetros ao longo da fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai.

“Sem terra, o indígena não tem onde plantar e o que comer, tendo que procurar uma atividade remunerada. O trabalho sazonal nas colheitas acaba sendo a única oportunidade”, afirma Rangel.

O problema não é exclusivo dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul, contudo. “Comunidades indígenas em várias regiões do país, principalmente no Sul e Centro-Oeste, estão vivendo em condições muito precárias, em beira de estrada, por não terem suas terras demarcadas”, diz a antropóloga.

Maçãs e garimpo

No lugar da colheita da cana-de-açúcar, que aliciava a maioria dos escravos indígenas na década passada, agora é a colheita da maçã no RS e SC que desponta como atividade onde povos nativos são submetidos a condições degradantes de trabalho.

De acordo com a entidade indigenista, estima-se que mais de 13 mil indígenas trabalhem nos pomares de maçãs atualmente de forma exaustiva, com jornadas de mais 12 horas diárias em troca de um salário mínimo. A maioria pertence ao povo Kaingang, habitantes do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, e aos povos Terena e Guarani-Kaiowá, de Mato Grosso do Sul.

Enquanto isso, na Amazônia, um levantamento da Hutukara Associação Yanomami de abril deste ano mostra que o garimpo já alicia os Yanomami para áreas de garimpo ilegal, onde trabalham de maneira insalubre em troca de comida e roupa. Nessas garimpos, também há a exploração sexual de meninas indígenas.

“Estamos vendo cada vez mais os garimpos terem indígenas em trabalhos análogos à escravidão e praticarem a exploração sexual de meninas indígenas. O que está ocorrendo com os Yanomami é uma forma pior ainda de exploração do que nos trabalhos sazonais”, aponta Rangel.

“Em geral, a atividade garimpeira tem um desprezo muito grande pela população indígena. Teremos dimensão do aliciamento de indígenas pelo garimpo só daqui alguns anos”, completa a antropóloga.

Subnotificação

Relatos de auditores-fiscais do trabalho à reportagem mostram que os dados são maiores que os oficiais. “Em uma das maiores fiscalizações com trabalhadores indígenas já ocorridas no país, mais de mil indígenas foram resgatados de uma única vez”, afirma o auditor fiscal Antonio Parron, referência em trabalho escravo indígena.

Outro fator apontado pelos especialistas para a subnotificação dos dados em relação aos indígenas é a vulnerabilidade e a invisibilidade social desses trabalhadores.

“Encontramos muitos indígenas sem documento, só com uma certidão de nascimento administrativa feita pela Funai. Sem documentos pessoais e conta no banco, o trabalhador não consegue receber os benefícios a que tem direito e não tem acesso aos programas do governo”, diz Parron.

Rangel também aponta que, em alguns casos, os trabalhadores não dominam o português, sendo mais facilmente aliciados pela figura do “gato”, a pessoa que vai às aldeias contratar os indígenas em nome do dono da fazenda.

“Muitos não têm domínio do português, o que torna a exploração mais fácil”, aponta a antropóloga Rangel.

“Tratados como bichos”

Condições de moradia de indígenas resgatados em Ponta Porã (MS), em abril de 2022 (Super. Regional do Trabalho do MS)

Antonio Parron explica que é comum os trabalhadores indígenas receberem condições piores que os demais colegas em uma mesma fazenda. Também é recorrente o empregador forçar o indígena a caçar para ter o que comer.

“É comum chegarmos em uma fazenda em que os trabalhadores não indígenas, os que mexem diretamente com o gado, são bem tratados, enquanto que os indígenas, geralmente nas funções de serviços gerais, são colocados para dormir em barracos de lona no meio do mato e caçam para comer”, descreve Parron.

Quando se questiona ao empregador o motivo da diferença de tratamento entre os trabalhadores indígenas e os não indígenas, a resposta costuma ser, segundo Parron, “eles gostam de viver assim”.

Escravidão indígena é histórica

Registros históricos mostram que a invasão das terras indígenas por não indígenas foi oficializada pela Corte Portuguesa no Brasil colônia a partir de 1530, quando a posse de 20% de todos os territórios conhecidos foram distribuídos aos donatários das capitanias hereditárias. Os outros 80% destes territórios foram loteados e concedidos a terceiros sob o sistema de sesmarias.

Além da posse da terra, os donatários — portugueses membros da aristocracia e amigos do rei de Portugal — ganhavam o direito de escravizar os indígenas.

Posteriormente, durante as incursões bandeirantes pelo interior do Brasil entre 1628 e 1632, mais de 60 mil indígenas Guarani foram levados como escravos para a cidade de São Paulo.

A escravidão indígena começou a ser combatida somente a partir de 1758, por meio de um decreto de Marquês de Pombal, secretário de Estado do Reino de Portugal. O documento também proibia, contudo, o uso das línguas indígenas no Brasil.

De acordo com o censo de 2010, o último a levantar a população indígena — o próximo censo será publicado este ano —, existem cerca de 900 mil indígenas em todo o Brasil, o que representa menos de 0,5% da população total.

Dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que, em 2020, o Brasil tinha 72.861 indígenas com carteira de trabalho assinada — 1.080 trabalhadores indígenas registrados a menos do que em 2019 e 7.554 a menos do que em 2018.

Leia a matéria na íntegra em Mongabay.