Por Oltiel

Hoje (18/10) se comemora o Dia Internacional dos Pronomes, que foi estipulado para acontecer toda terceira quarta-feira do mês de outubro. A data foi proposta como uma conscientização ao respeito dos tratamentos pessoais e feita para ser uma iniciativa descentralizada. É uma data importante para se abordar o respeito às dissidências de gênero, ainda mais quando expressas na gramática.

Como seu nascimento vem do contexto anglófono, a data traz ênfase nos pronomes, que são os principais marcadores de gênero na língua inglesa. Em outras línguas, como a língua portuguesa, há mais que pronomes. Uma possível adaptação da data para o contexto da nossa língua seria dizer conjuntos de linguagem ao invés de só pronomes, sendo os conjuntos uma forma de descrição que considera, além de pronomes, artigos e finais de palavra – dois outros elementos muito importantes e presentes na comunicação cotidiana. Sendo assim, chamar a data de Dia Internacional dos Conjuntos de Linguagem é uma opção.

Falar em respeito a pronomes/conjuntos de linguagem pode parecer um assunto “saturado” às vezes. Para quem está familiarizade, pode parecer natural, o que implica em respeitar o tratamento gramatical das pessoas. Contudo, ainda assim, precisamos muito elaborar o que exatamente significa respeitar um tratamento, sendo um assunto com várias camadas. Hoje, vamos trazer essas camadas aqui, nesse dia tão especial.

Essa é uma data que toca numa questão bastante sensível a grupos dissidentes das normas de gênero, que é o respeito ao tratamento pessoal. A gramática é uma ferramenta de comunicação, e, na comunicação, trazemos nosso entendimento do mundo. Quando uma pessoa é respeitada na gramática, a existência dessa pessoa é colocada como parte da nossa realidade. Quando não há esse respeito, essa existência está sendo desmerecida, menosprezada, apagada. E essa violência ainda é comum a grupos dissidentes – fazendo uma menção particular a pessoas trans, não-binárias e não-conformistas de gênero.

Quando se fala em respeitar tratamentos gramaticais, pensamos com frequência em mulheres trans, homens trans, travestis e pessoas não-binárias. E com razão esses são os grupos que podem vir à mente de imediato, por serem os mais afetados e aqueles que trazem com intensidade questões como essa. Isso pode ser observado em campanhas e iniciativas variadas que enfatizam o respeito aos “pronomes” – elas sempre vêm desses grupos. Contudo, devemos direcionar atenção às pessoas cis que são não-conformistas de gênero, ainda mais quando reivindicam para si um tratamento diferente do esperado de seus gêneros, pois elas também podem ser afetadas por maldenominação.

A maldenominação é uma adaptação lusófona do que pode ser conhecido como misgender(ing), que é o ato de desrespeitar pessoas dissidentes através de nomes e marcadores gramaticais que elas não usam para si. Isso inclui usar um nome morto, chamar ume não-binárie de “menino”, se referir a uma travesti como “rapaz”, entre outros exemplos evidentes. Maldenominação pode ser proposital ou acidental. Mesmo acidental, não deixa de ser uma violência. Muitas pesquisas sobre a saúde mental de pessoas trans apontam o quanto atos de maldenominação, junto com outras discriminações cissexistas, afetam a autoestima delas e contribuem com ansiedade, depressão, disforias, entre outros males.

Pessoas dissidentes lidam diariamente com maldenominação. Mesmo pessoas trans binárias consideradas “passáveis” (ou seja, próximas do ideal cisnormativo de homem/mulher) ainda são vítimas disso. Pessoas com expressões de gênero não-conformista passam por isso mesmo solicitando tratamentos dentro das normas gramaticais (conjuntos o/ele/o e a/ela/a). Pessoas que usam qualquer forma de neolinguagem, pior ainda, travam uma luta pelo respeito mais básico dentro de seus próprios idiomas. Outras subversões da gramática, como o uso de “isso” e “aquilo” para pessoas que desejam esse tratamento, são tidas como invenções muito absurdas, ainda mais “pós-modernas” (num sentido negativo).

Línguas marcadas por um binarismo de gênero, como o exemplo da nossa, estão sendo questionadas e discutidas por dissidentes de gênero, principalmente pessoas não-binárias, e assim está havendo a construção e formulação de alternativas gramaticais mais inclusivas, dentro e fora das normas. Por fora das normas, esteve surgindo organicamente formas de neolinguagem, como o caso do neopronome “elu” e das palavras flexionadas com a desinência -e (todes, menine, amigues, etc). Não há como falar sobre respeito aos tratamentos pessoais sem incluir neolinguagem; afinal, pessoas que a usam já existem e ela é um fenômeno tão potente quanto os demais avanços nas discussões de gênero. E pessoas que usam neolinguagem não devem ser culpadas pela incapacidade de línguas estruturadas por dois gêneros de incluir suas existências. Pessoas merecem mais respeito que palavras criadas em normas linguísticas, que, vale lembrar, são construções sociais e não são livres de vieses normativos (patriarcais, cissexistas, enfim).

Falando mais de neolinguagem, não é apenas formas populares e colocadas como padrão, tais como os sistemas que usam “elu” e “ile”. Neolinguagem é mais do que um “gênero neutro” padrão, mais do que um terceiro gênero gramatical para ser incluso na língua, como foi o caso do pronome “hen” da língua sueca. Por mais que a comunidade não-binária brasileira esteja numa árdua luta em prol da neolinguagem no uso cotidiano e como um caminho para validar existências fora do binário, não devemos nos conformar em sermos incluídes como só um terceiro gênero ou um gênero neutro e acharmos que isso é suficiente, o fim. Quem consegue respeitar alguém que usa elu e ile, pode respeitar quem usa éli, ilo, ael, elz, entre outras possibilidades. Afinal, se a diversidade de gênero é tão imensa, por que não podemos ter tal diversidade na nossa própria gramática?

Discursos genéricos sobre respeitar os tratamentos pessoais de dissidentes de gênero precisam ir mais além. Para algumas partes da sociedade, parece ser mais fácil respeitar alguém quando solicita tratamentos da gramática normativa e possuem uma expressão de gênero “correspondente”. E uma parte menor dentro disso está mais disposta a aceitar só mais uma opção de tratamento, mas ainda com a condição de que seja para pessoas mais “andróginas”. Este é o outro ponto do texto e outra questão que deve ser destacada: tratamentos gramaticais vão além de expressões de gênero. Precisamos normalizar a ideia de que pessoas devem ser respeitadas independentemente de suas expressões.

Por muito tempo, a comunidade não-binária esteve trazendo a máxima “pronome não define gênero” nas redes sociais. E isso deve ser levado ao sentido literal, mas não apenas isso. Não é por que tratamentos não devem ser associados a gênero que todes devem ser tratades por qualquer coisa. Vivemos ainda num mundo com demandas de acordo com os contextos sociais e conflitos políticos da atualidade. Não estamos ainda numa “utopia” onde todo mundo será indiferente com gêneros gramaticais. Portanto, até o momento, pessoas solicitam determinados tratamentos, podendo ter preferências, podendo pedir o uso de algum em situações específicas, podendo precisar pedir algum em razão da identidade e/ou expressão de gênero. Conviver com e entre pessoas dissidentes desenvolve melhor nossa noção com essas nuances, e aprendemos a lidar com elas para assim criarmos ambientes mais seguros para es dissidentes, para nós mesmes também.

Depois de toda essa explicação, vamos ao encerramento do tema com dicas fundamentais que podem ser passadas para quem tiver preocupação com o bem-estar de pessoas dissidentes (não são apenas para pessoas cis, mas para todo mundo):

– conviver com pessoas dissidentes variadas, não apenas pessoas com tratamentos “óbvios” ou “mais fáceis”, ainda mais no caso de gente que usa neolinguagem;

– normalizar indicar tratamentos pessoais independentemente da identidade de gênero, como numa bio em redes sociais ou em apresentações pessoais;

– perguntar como tratar as pessoas quando isso não for tão evidente, e em momentos apropriados para essa interação;

– prestar atenção em como as pessoas se tratam e como outres as tratam, assim como em acessórios que podem indicar tratamento (como um botom), pois para algumas pessoas ficar se explicando pode ser estressante;

– se atentar para o caso de pessoas que não são assumidas ainda e, no particular, conferir se deve tratar a pessoa “diferente” dependendo da situação (como na presença de familiares preconceituoses);

– quando for difícil lembrar de um conjunto de linguagem por alguma razão, treinar pessoalmente o uso de uma gramática sem demarcação direta de gênero (evitar artigos e pronomes, usar a palavra pessoa, contornar adjetivos marcados com o uso de verbos, entre outros exemplos);

– no caso de possíveis erros, apenas se corrigir, e não precisa se desculpar excessivamente, muito menos endossar que respeitar as pessoas “é difícil”.

Para o dia de hoje, precisamos criar uma mentalidade que deve ser aplicada em todos os dias do ano. Não apenas numa data, não apenas com um número limitado de pessoas, não apenas com aquelas pessoas que estão dentro de um nível limitado de aceitação. Respeitar conjuntos de linguagem é parte do respeito à individualidade, assim como previsto em proposições como os Princípios de Yogyakarta. Assim como previsto até pela própria lei brasileira no decreto nº 8.727. Mas, para além de legislações, respeitar as pessoas devia ser, antes e acima de tudo, questão básica de convívio em sociedade. E é essa consciência que precisamos desenvolver e normalizar. Que sejamos todes respeitades enquanto indivíduos, hoje e sempre.

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