Foto: Reprodução / Football Australia

Por Pedro Vater

A família de Awer Mabil conheceu tanto o desgosto quanto a euforia requintada, o jogo do dia 26/08/2018 pela copa do mundo enfaticamente se enquadra na última categoria.

Com o placar da disputa de pênaltis contra o Peru empatado em quatro a zero, Mabil se preparou para chutar.

Para um jogador de 26 anos cuja ambição de infância era jogar no maior evento futebolístico do mundo, as apostas dificilmente poderiam ser maiores, vencer a disputa de pênaltis e avançar para a próxima fase da Copa do Mundo, ou perder e definhar por mais quatro anos.

“Ele tinha um sonho de que um dia jogaria uma Copa do Mundo e representaria a Austrália”, disse o tio de Mabil, Peter Kuereng, em entrevista a uma TV Australiana.

O pênalti foi um drama dentro do drama. Em meio a aplausos e zombarias, ele caminhou lentamente até a área do pênalti, colocando a bola no local e ajeitando-a.

Nos momentos que se seguiram, qualquer sinal de nervosismo se dissipou. Calmo e casual, e em uma corrida curta, Mabil aproximou-se da bola e chutou em direção ao goleiro peruano Pedro Gallese, que havia mergulhado para o outro lado.

Foto: Divulgação

Foi o penúltimo chute do jogo, dando aos australianos uma vantagem que eles aproveitariam momentos depois, quando Andrew Redmayne fez uma defesa para completar a busca da Austrália por uma vaga no Qatar.

Para Mabil, a glória nacional significava realização pessoal, a qualificação era a realização daquela ambição juvenil de alcançar o auge pessoal.

Seu tio expressou o mesmo sentimento, mas de forma mais lacônica, com o eufemismo típico de alguém cujo orgulho é temperado pela modéstia.

“Esse sonho agora está alcançado”, disse Kuereng.

De meias a Austrália

As Copas do Mundo tendem a encorajar a conversa sobre o destino, em vez da contingência de como as coisas poderiam ter sido.

Além disso, o futebol produz tantas histórias de triunfo diante da adversidade que os desafios excepcionais enfrentados por Mabil, que incluem tragédias pessoais, podem ser ofuscados por seu sucesso no esporte.

“Quando menino, ele cresceu no campo de refugiados e foi aí que começou a sonhar em jogar futebol e em um torneio maior”, disse Kuereng.

O campo de refugiados em questão ficava em Kakuma, no Quênia. Estabelecido no início dos anos 90, forneceu abrigo básico a centenas de milhares de pessoas, muitas delas crianças cujos pais foram forçados a fugir de países como o que hoje é o Sudão do Sul.

Espectadores assistem a uma partida de futebol da Kakuma Premier League, uma competição criada para refugiados. Foto: Reprodução / Facebook Descalço às Botas

Mabil nasceu em Kakuma, tão distante dos campos e de uma faculdade de elite quanto se poderia imaginar. Mas, como incubadora de esportes e outros talentos, envergonha muitas outras instituições renomadas. Entre seus ‘ex-alunos’ estão o jogador da AFL Aliir Aliir e a modelo Adut Akech.

Foi dentro dos limites do campo de Kakuma que Mabil jogou futebol com outros refugiados.

A bola escolhida foi uma meia enrolada, que, ironicamente, eles chutavam com os pés descalços, embora às vezes tivessem sacos plásticos suficientes para formar uma chuteira.

“Eles rolaram e ficaram duros, e foi isso que eles usaram como bola de futebol”, disse Kuereng.

Em 2006, com a ajuda de seu tio, Mabil e sua família conseguiram passagem para a Austrália e se estabeleceram em Adelaide.

Suas proezas esportivas se destacaram, e o sobrenaturalmente habilidoso Mabil fez sua estreia na A-League pelo Adelaide United aos 17 anos.

Awer Mabil, do Adelaide United, comemora seu gol contra o Sydney FC no Allianz Stadium, em Sydney. Foto: David Moir

Sua convocação para a seleção nacional veio em 2018. Mas, meses depois, quando se preparava para entrar em campo contra os Emirados Árabes Unidos, sua irmã de 19 anos, Bor, morreu em um acidente de carro no norte de Adelaide.

“Ele estava jogando futebol pela Austrália quando [recebeu] a notícia da perda de sua irmã”, disse Kuereng.
O motorista estava embriagado e sob influência de drogas quando perdeu o controle do carro em alta velocidade, preso posteriormente.

“Todos os dias, desde que meu filho morreu, não consigo passar mais de 30 minutos sem pensar e chorar por sua morte”, disse a mãe de Bor e Awer a um tribunal de Adelaide em 2019.

“Meus dois filhos mais velhos estão lutando para aceitar a morte de Bor”.

‘Significa muito para Mabil’

Vários anos antes dessa tragédia, Mabil havia retornado a Kakuma.

O resultado da viagem foi a organização Barefoot to Boots, que Mabil fundou com seu irmão para garantir melhores resultados de “saúde, educação e igualdade de gênero” para os refugiados.

A organização não governamental Barefoot to Boots usa o futebol para combater a desigualdade. Foto: Reprodiução / Facebook Descalço às Botas

Embora seu foco seja humanitário, ele também visa promover o esporte que o tornou uma figura esportiva internacional, “Você pode ver muitas crianças sendo apresentadas ao futebol, e isso é por causa de Awer”, disse Kuereng.

Para Mabil, a Copa do Mundo acena – mas a enormidade da jornada que o levou até lá não passou despercebida.
“Significa muito para Awer”, disse Kuereng.

“Apesar de muitos desafios, ele conseguiu.”

A Austrália estreia pelo grupo D da Copa do Mundo Qatar 2022 neste dia 22/11, jogando contra a França sem seus principais titulares, outra oportunidade para Awer Mabil mostrar sua qualidade, mas também representar para o mundo quem sua história e origem.

Texto produzido em cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube