Por Rachel Motta Cardoso

A fase de grupos já passou e agora a Copa do Mundo de Futebol Feminino chega ao tão aguardado mata-mata. Vários países deixaram a competição e outros estão fazendo história! É a primeira vez que três seleções do continente africano avançam para esta etapa dos confrontos e uma delas já sediou uma Copa do Mundo em 2010.

Com o chaveamento, uma partida em especial nos chama a atenção: Holanda e África do Sul, que jogarão no dia 5 de agosto em Sidney. O motivo? A história que está por trás das relações entre esses dois países, que teve início lá no século XVII, com a chegada do primeiro holandês na região e que seria um dos componentes de um grupo que gerou uma das mais longas lutas da população negra contra a segregação racial.

Os antecedentes

Com o domínio turco em Constantinopla a partir de 1453, o comércio de especiarias passou a viver um período de crise, que era motivado pelo monopólio do mundo árabe no caminho até as Índias. Foi a busca por um outro caminho, por uma alternativa, que o navegador português Bartolomeu Dias se aventura pela costa africana e descobre um novo caminho para as Índias ao passar pelo Cabo das Tormentas em 1487. Com isso, Portugal se torna o primeiro país a estabelecer uma rota comercial pela região. No entanto, como o nome sugere, a região não inspirou nos portugueses a vontade de se instalarem na região, que apresentava fortes ventos. Então, durante quase dois séculos, o extremo sul do continente africano seria apenas um trecho da nova rota para as especiarias comercializadas nas Índias, vendo embarcações portuguesas, espanholas, francesas, inglesas e holandesas passarem por suas “tormentosas” águas.

Como dito, não era apenas Portugal quem se aventurava por aqueles mares. Vivia-se a Era das Grandes Navegações (XV-XVII) e os holandeses possuíam duas grandes forças comerciais: a Companhia Holandesa das Índias Orientais, criada em 1602 e com o objetivo de afugentar possíveis competidores europeus no comércio com a Ásia; e a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, essa voltada especificamente para combater o comércio e a expansão de portugueses e espanhóis, criada em 1621. É em 6 de abril de 1652 que os holandeses se instalam no Cabo das Tormentas e iniciam sua história na região com a chegada do médico Jan van Riebeeck, que funda a Cidade do Cabo.

O “grande vilão” e a necessidade de uma base de reabastecimento

O deslocamento das tripulações desde a Europa até o continente asiático levava meses e passaram então a conviver com uma realidade incômoda: o escorbuto, considerado um grande vilão das grandes navegações. A alimentação inadequada e a falta de vitamina C – cujo diagnóstico só seria descoberto no século XVIII pelo médico escocês James Lind – deixavam os homens a bordo com sintomas de fraqueza, bem como feridas nas gengivas, mucosas e pele. A medicina europeia da época das navegações sabia que frutas e verduras frescas evitavam o desenvolvimento da enfermidade, mas era impossível ter este tipo de alimento nas embarcações porque não tinha como mantê-los. É assim que, diante das inúmeras viagens no período, a Companhia das Índias Orientais encarrega o médico Jan van Riebeeck de fundar uma base para o reabastecimento de seus navios. Desta forma, em 6 de abril de 1652, os primeiros holandeses chegam ao cabo.

Os primeiros a habitarem a região eram “biscateiros, desempregados e saltimbancos”, que deixavam a miséria das ruas de Amsterdã para se arriscarem na nova terra. O objetivo destes homens era simples: plantar legumes que abasteceriam os navios e, assim, espantar o escorbuto. Assim, no início, a ideia não era colonizar a região, mas servir como apoio à rota comercial ao fornecer alimentos frescos e água. O tempo passa e uma grande fortaleza é instituída na região. No entanto, os primeiros traços de uma longa história de dominação, exploração e conflitos já poderia ser vista na relação entre holandeses e a população local.

Disputas pelo domínio e o surgimento dos bôeres

Os primeiros traços de uma longa história de segregação racial já são vistos nessa fase. A presença e as atitudes de Jan van Riebeeck apontam para isso. Em uma década ocupando aquele território, o médico jamais teve contato com a população negra e sequer buscou aprender os idiomas falados ali. Os nativos eram chamados por ele de “cães negros, imbecis e fedorentos”. Foi assim que, em 1660, Riebeeck mandou construir uma cerca com um único objetivo: isolar os holandeses da população local, que à época eram majoritariamente compostos por povos Zulu, Khoisan e Xhosa. Contudo, isso era apenas o início de uma longa e dolorosa história de segregação racial que seria vivida por séculos pelos nativos.

Um ponto que devemos destacar é a chegada de outros colonos à região, que passa a receber colonos calvinistas da Alemanha, da França e até mesmo da Dinamarca durante os séculos XVII e XVIII. No entanto, o domínio holandês permanece na região. Até que em 1795, no clima das Guerras Napoleônicas e no contexto de uma das muitas guerras anglo-holandesa (que já vinham acontecendo entre os dois países desde 1652), os ingleses conquistam a Cidade do Cabo. Logo em seguida, as tropas holandesas insistem e retomam a cidade, que fica sob seu domínio por um curto período (1803-1806). Enfim, os holandeses são derrotados novamente pelos ingleses, que retomam a cidade e a tornam a capital da colônia britânica do Cabo.

Boer Family, 1886. Foto: Joseph Rauscher

Enquanto a cidade do Cabo era dominada pela Inglaterra, os colonos não-ingleses seguiam para o interior da região. Esse movimento migratório ficou conhecido como “a grande jornada” e aqueles que se aventuravam passaram a ser conhecidos como “os viajantes” ou voortrekkers. Assim, esses colonos acabam fundando suas próprias repúblicas: o Estado Livre de Orange e “A Terra para Além do Rio Vaal”, ou Transvaal. Seria justamente essa última república que, em 1857, se autoproclamaria República Sul-Africana. A presença de ouro e diamantes nas repúblicas dos colonos atraiu a coroa inglesa, que acabou levando a um período da história conhecido como Guerras dos Boêres. A primeira se deu entre 1880 e 1881, garantindo a independência da Transvaal, e a segunda logo em seguida, entre 1899 e 1902, quando os britânicos tentam retomar o território independente, provocando violentos confrontos e duras políticas de represálias – como a queima de fazendas, destruição de casas e mortes de milhares de civis. Esse segundo embate levou à assinatura de um tratado de paz em Pretória, o Tratado de Vereeniging, acabando com o conflito. Era o fim de uma sangrenta batalha, mas o início de um regime de segregação que marcaria a história da África do Sul.

A origem das políticas de segregação

O que o Tratado de Vereeniging definia era o domínio do território pelos britânicos, através do acordo assinado entre os representantes do Reino Unido e das repúblicas independentes formadas pelos bôeres. Aliás, é justamente nesse processo de interiorização da região e de migração que os colonos se redefinem culturalmente dando origem a uma nova linguagem, o africânder, principalmente pelos holandeses. De acordo com essa peculiar característica, o Tratado estabelecem um estatuto em especial, já que o novo idioma não era reconhecido pelas autoridades do Reino Unido, que a reconhecem como idioma somente em 1906. Além disso, é a partir deste momento que começamos a ver como a segregação racial toma forma juridicamente: os negros estavam proibidos de votar, com exceção da Colônia do Cabo, em que os negros proprietários de terra poderiam exercer o seu direito de voto. Era a base para o que viria a ser conhecido como apartheid. Por fim, após anos de negociações, britânicos e bôeres chegam a um acordo, dando origem à União Sul-Africana em 1910, com a anexação das repúblicas dos bôeres às colônias britânicas do Cabo e de Natal.

Foto: Ernest Cole

Com a criação da União Sul-Africana, diversas leis foram significativas no processo de institucionalização do apartheid. Desde leis que proibiam os nativos de romperem seus contratos de trabalho – o Regulamento do Trabalho Indígena – até a conhecida Lei da Terra, que a partir de 1913 determinava que terras poderiam ser vendidas a brancos e a negros. O mais terrível nesta lei é que a população majoritariamente negra ficou com apenas 7,5% de terras à sua disposição.

Como o voto de negros era ligado à posse da terra e apenas na Colônia do Cabo, isso já demonstra que a política seria dominada pela minoria branca. Foi assim que o Partido Nacional, criado em 1915 por James Barry Munnik Hertzog, domina o cenário político e instaura oficialmente o regime de apartheid a partir de 1948.

Apartheid e luta

O primeiro registro de uso do termo apartheid é de 1917, durante o discurso de do marechal Jan Smuts, um dos líderes da Segunda Guerra dos Bôeres e que se tornaria Primeiro-Ministro da União Sul-Africana de 1919 a 1924. Sua origem vem do africâner e significa “separação”. Contudo, como regime de política oficial de Estado, ele se instaura em 1948 através do pastor protestante Daniel François Malan, que venceu Smuts nas eleições gerais de 1948. Foi durante o seu período como Primeiro-Ministro que as bases do regime segregacionista se estabeleceu, pois dividia os habitantes em grupos raciais, que eram responsáveis por quatro nações dentro daquele território, conforme sua cor e origem. Além disso, segregava as áreas residenciais e destinava aos “não-brancos” aos “homens de cor”, os piores serviços médicos e educacionais. Naqueles primeiros anos de institucionalização do regime de separação, mais de trezentas leis seriam produzidas e colocadas em prática.

Segunda Guerra dos Bôeres. Foto: Creswicke, Louis

Mas onde há discriminação há resistência e na África do Sul não seria diferente, já que o Congresso Nacional Africano, partido político criado em 1912, se une para lutar contra o apartheid. Durante os anos 1950 e 1960, vários protestos foram organizados, bem como atos de desobediência civil diante das absurdas leis de segregação. Isso ocasionou a prisão de milhares de pessoas. Um dos confrontos mais importantes e decisivos foi o massacre de Sharpeville, em 21 de março de 1960. Ao se rebelarem contra a Lei do Passe, em que negros deveriam andar com uma caderneta descrevendo seu destino, vinte mil manifestantes se reuniram nos arredores de Joanesburgo e a polícia sul-africana abriu fogo contra a multidão, levando à morte de sessenta e nove pessoas e mais de uma centena de feridos. Foi do resultado deste protesto que temos a figura de Nelson Mandela em destaque, ao criticar o movimento de resistência pacífica utilizado como estratégia pelo Congresso Nacional Africano até então. Após a repercussão da fala de Mandela, o partido adota a sabotagem como estratégia de ação. Seriam anos de muita resistência, confrontos e violência. Contudo, anos depois, Mandela seria preso por traição e condenado à prisão perpétua, cumprindo 27 anos de sua até a negociação para sua libertação em 11 de fevereiro de 1990.

Massacre de Shaperville. Foto e pintura de Godfrey Rubens

Os primeiros movimentos para o fim do apartheid vieram do presidente Frederik Willem de Klerk, eleito em 1989 e sendo o último presidente branco do país. Com as reformas iniciadas por Klerk, um referendo também foi realizado, mas limitado aos eleitores brancos sul-africanos. O resultado seria um expressivo sim. Era o fim do apartheid, a instauração do sufrágio universal a partir de 1992 no país e o início de uma nova Era para a África do Sul, com a eleição de Mandela em 1994.

O reconhecimento desta luta pode ser visto pelos inúmeros indicados e vencedores do Prêmio Nobel, principalmente os vencedores do Nobel da Paz: em 1984, com Desmond Tutu, o bispo anglicano que lutou pacificamente contra o regime do apartheid; Frederick de Klerk, o último presidente sob o apartheid, em 1993; e, finalmente, um dos mais conhecidos, Nelson Mandela, o primeiro presidente da nação livre do regime de segregação e que dividiu o Nobel com de Klerk em 1993.

Foto: Nuria

Com informações de Patrick Schmelzer (DW), Leonardo Passos, Folha e Jan Van Riebeeck

Texto produzido em cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube