Em entrevista, pedagoga fala sobre experiências adversas na infância e as relações com a desigualdade social.

Foto: Antonio Cruz / Agência Brasil

Por Stella Gianna Zanelatto Junqueira*

A família como constituição e a escola são os dois locais onde as crianças vão começar a se construir como pessoas e agentes sociais. Não é novidade, então, a importância de ter esses dois ambientes incluídos da maneira mais saudável possível, para garantir diversos benefícios físicos, psíquicos, emocionais e sociais para as crianças.

Um estudo feito pela 70/30 Campaign, uma organização do Reino Unido que trabalha para reduzir o abuso infantil, negligência e outras experiências negativas em até 70% até o ano 2030, objetivo que deu nome a campanha, apresenta o que são as experiências adversas na infância (ACE’s).

Segundo o estudo, essas experiências consistem em 10 eventos que podem traumatizar crianças a ponto de trazer sérios problemas de saúde. São eles os abusos: emocional, físico ou sexual; as negligências: física ou emocional; e os desafios dos lares: violência doméstica, abuso de substâncias, doenças mentais, divórcio ou algum dos pais encarcerados.

As consequências para pessoas que tem 4 ou mais, são 3 vezes mais chances de sofrer de doenças pulmonares ou se tornarem fumantes; são 14 vezes mais prováveis de tentarem cometer suicídio; 4,5 vezes mais chances de desenvolver depressão; tem 11 vezes mais possibilidade de abusarem seriamente de drogas; 4 vezes mais chance de começar a vida sexual aos 15 anos e 2 vezes mais chances de ter doenças de fígado. Aqueles que têm mais de 6 podem chegar a morrer 20 anos antes daqueles que não tem nenhuma. Portanto, o que se é colocado como normal durante a infância, como tapas e gritos são muito mais perigosos do que a população imagina ser. É, então, uma questão urgente de saúde pública.

Contudo, a psicóloga e educadora parental Caroline Rosa, em entrevista aos Estudantes NINJA, deixa claro que o problema é muito mais profundo e que apenas espalhar informação sobre os ACE ‘s não é eficaz. Segundo ela, essas informações sobre os impactos da negligência na infância e a luta por formar pessoas que eduquem respeitosamente precisam andar junto com a garantia das necessidades básicas.

Foto: Arquivo Pessoal

“Não é eficaz e nem respeitoso começar a falar sobre birras com uma mãe em situação de vulnerabilidade social com 5 filhos para alimentar, que vende o almoço para pagar o jantar, sem antes garantir que essa necessidade anterior seja atendida. (…) para uma mulher negra, mãe solo numa periferia, que convive com a real possibilidade do seu filho não voltar para a casa, o papo sobre regulação emocional não é prioridade e não tem como ser”.

Caroline é uma grande defensora do sistema público e acredita que com verbas para as necessidades básicas, outros fatores podem ser discutidos com as famílias.

“Crianças com fome não sentam nas cadeiras da sala de aula e conseguem aprender. Não tem aprendizado em um cenário desse. Portanto, ainda veremos grande abandono escolar, pois as crianças precisam ajudar os pais a trabalhar para pagar comida.”

A psicóloga ainda diz que o governo Bolsonaro ajuda a destruir ainda mais as estruturas familiares e escolares. “A diferença entre as classes está cada vez mais visível. As escolas públicas estão ainda mais sucateadas e os professores ainda estão estressados. Os professores agora têm maior preocupação, por exemplo, com a segurança física de seus alunos que podem acabar sendo vítimas de bala perdida, que podem não ter o que comer, o que vestir. Nesse contexto, é muito mais difícil que os professores estejam disponíveis física, mental e emocionalmente para rever suas estratégias e métodos educacionais.”

Assim, segundo Carol, vai se formando uma bola de neve. Com a precarização das estruturas escolares e familiares, sem a garantia do básico, mais experiências adversas vão acontecendo. Teremos adultos adoecidos física e emocionalmente e, portanto, crianças sem receber o cuidado apropriado. Dessa forma, cresce a diferença entre classes sociais e econômicas, o que faz com que as estruturas públicas se tornem ainda mais carentes de recursos e investimentos. Daqui há alguns anos, será ainda mais visível os estragos do governo Bolsonaro para o Brasil e para as famílias brasileiras.

O que vemos hoje é que o acesso a cursos, formações e informações sobre uma educação respeitosa e não violenta ainda é restrito às camadas com maior poder econômico, onde se vê um movimento crescente de pais e professores mais conscientes e envolvidos em oferecer um ambiente emocionalmente seguro às crianças. Caroline acredita que precisa-se urgentemente, sim, continuar falando sobre violência contra as crianças, sobre educação respeitosa, que é cientificamente comprovado sendo benéfica a todos. Entretanto, não se pode ignorar que a luta para melhorias de infraestrutura e acesso às necessidades básicas, potencializará ainda mais esse processo, e sem ela apenas um grupo específico de crianças será beneficiado. É nosso dever como seres humanos e como cidadãos não deixar nenhuma criança de lado.

*Stella Gianna é colaboradora dos estudantes NINJA e aluna do 3º ano do ensino médio do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo.